Page 159 - Revista da Armada
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os dois, inconsoláveis, implantar uma cruz de  capitão não quer mais peixe a que se segue, no  Dr. G.M.: Os programas musicais via rádio -
         madeira feita pelo carpinteiro de bordo. Foi  lugre, sob o tempo que fizer, tão desprotegidos  um começava sempre com um fado de
         assim, em seis meses de viagem...  como no dóri e sempre molhados, a escala que  Coimbra que me era dedicado e que eu ret-
                                            consiste em cortar as cabeças, eviscerar, lavar, sal-  ribuía com música portuguesa e contando ane-
           R.A.: Quando contactou pela primeira vez  gar – o salgador é o principal especialista - e arru-  dotas. Mas mais belo que ver a manobra de
         com aquele povo?                   mar no porão o pitéu que tão bem conhecemos.  virar de bordo de um lugre veleiro,  que con-
                                              Pelas 2 ou 3 da madrugada aquecia-os a  tornar um perigosíssimo iceberg, que contem-
           Dr. G.M.: A 4 de Setembro, a quase 70º N,  chora, o caldo de arroz, alho, tomate, cabeças e  plar uma espectacular aurora boreal ou um pôr
         quando, pela experiente mão dum piloto  línguas de bacalhau que provei sem que se  do sol melhor dos que o de Rubens, é a profun-
         esquimó, penetrámos a rochosa entrada de  tenha cumprido a profecia de que por isso,  da solidariedade em que todos os homens do
         Egesdeminde cercados de barcos de mulheres  tivesse de lá voltar no ano seguinte.   mar se desfazem para ajudar os mais atingidos
         esquimós, vestidas de côres garridas que, para  Chegavam a desejar uma brisa que impedisse  pelo mau tempo.
         geral contentamento, nos saudaram entusiastica-  o capitão de os mandar pescar.
         mente.                                                                  R.A.: Sinceramente?!
           De menos de 400 habitantes esquimós e  R.A.: Uma brisa?!
         cerca de uma dezena de dinamarqueses incluin-                           Dr. G.M.: Oh! A solidariedade, o humanismo
         do dois médicos, uma simpática médica e um  Dr. G.M.: Nem mais! Quando vi dóris aca-  e o sacrifício heróico dos pescadores que tive
         pintor, aí retirado, era uma cidade de pequenas  bados de largar, regressarem a toda a pressa e me  oportunidade de ver e sentir, excedeu a minha
         casas de madeira vermelho escuro ou amarelo  disseram que era a brisa não imaginava que de  melhor expectativa.
         torrado com um telhado de fibra pintada de  um mar chão, como o Mondego no Choupal, se  Mas não esqueça as esquadras brancas,
         verde, construídas sobre montes de pedra e  pudessem elevar de repente verdadeiras serras de  como eu lhes chamava, de icebergs verda-
         dominadas pela torre da igreja.    água.                              deiros, de água doce e azulados, ou falsos, de
                                              Se não for uma breve brisa cavaleira, dura três  água salgada e esverdeados, nem os densos
           R.A.: Ainda assim são.           ou quatro dias. As Tareias de Sudoeste viram tudo  nevoeiros, com apitos que de 2 em 2 minutos
                                            do avesso; apetrechos, mastreação, dóris e até  nos apertavam o coração, independentemente
           Dr. G.M.: A terra é inóspita e o cão esquimó,  homens, que outros terão de substituir ao leme,  de sabermos que cruzávamos com comboios
         que não ladra, antes uiva, é de uma força e fero-  vão, irrecuperavelmente, parar ao malagueiro. As  aliados para Murmansk e que estes, por razões
         cidade inauditas. A população delicada e aco-  de Noroeste levam-nos num ápice, a correr com o  de segurança, iam às escuras e em absoluto ...
         lhedora. As mulheres cumprimentam-nos ao  tempo em árvore sêca, aos Açores donde o regres-  silêncio.
         gracioso modo tradicional e, note, não havia  so aos bancos era muito moroso.
         analfabetos e o ensino obrigatório já era de seis                       R.A.: Da Guerra recorda algum evento?
         anos.
           E mais; não havia prisões. Só na capital,                             Dr. G.M.: Imensos. Aviões, navios, submari-
         Godtaab, vi polícias, mas sem qualquer ... arma.                      nos, minas à deriva, rebentamentos, torpedea-
           Atrevido como sou, acabei por organizar um                          mentos, bombardeamentos, explosões, incêndios
         muito divertido glossário básico que nos foi                          e consequentes afundamentos. Mesmo dos nos-
         muito útil. Confraternizámos e neste capítulo as                      sos.
         recordações são as melhores.                                            Mas recordo um em particular. A 300 milhas a
                                                                               norte dos Açores fomos interceptados por navios
           R.A.: As fotografias que guarda consigo teste-                      de guerra ingleses que, de dedo no gatilho, pas-
         munham-no...                                                          saram a pente fino o nosso navio e nos levaram,
                                                                               repare, o único telegrafista. A coincidência de
           Dr. G.M.: Os contactos aprofundaram-se,                             afundamentos com a presença do «Gil Eannes»
         inclusive por ser médico, pois todos aprendemos                       na zona fazia dele o procurado informador dos
         as palavras essenciais que nos abririam as portas.                    alemães.
         A seguir as cantigas, as danças e os costumes.                          Neste contexto de «prisão» e tensão o disparo
           As danças deles são violentíssimas, com ace-                        acidental da arma dum marinheiro inglês que lhe
         lerados rodopios e paragens bruscas; mas tam-                         esfacelou a face, levou-me de imediato a assisti-
         bém por lá dancei o fox e o tango. E as mulheres                      -lo, mas a gravidade exigia meios de que não dis-
         esquimós tem uma pele inesquecivelmente ...                           punha, porém, como estavam a dois dias dum
         sedosa.                                                               navio inglês com médico, fiz, claro, o melhor que
           E, claro, também lhes ensinámos cantigas e                          sabia e podia antes de ser evacuado para ...
         danças nossas. O vira, as rodas ...                                   Gibraltar!
           R.A.: Tentamos imaginar. E da safra?                                  R.A.: O quê!?

           Dr. G.M.: Quando cheguei procurei integrar-                           Dr. G.M.: Contingências da guerra no mar.
         -me o melhor possível no viver daqueles bravos.                       Mas, por «obra tão correcta», recebi um louvor
         Deixei crescer a barba e pesquei 18 bacalhaus –  A bordo do NRP “Tejo” o Dr. Gualter Marques como  do Almirantado Britânico que exibo com
         para saber como aquilo era – e de tal modo aza-  2TEN, em grande uniforme.  vaidade, como médico cirurgião e como jovem
         gaiava que fui graduado em «Pescador de 1ª                            ex-assistente de Bissaia Barreto e Ângelo da
         Linha». Mas o trabalho clínico acabou por me  R.A.: À vela?           Fonseca. A bala, essa guardo-a com inequívoco
         absorver completamente.                                               orgulho.
           A vida de todos era duríssima. Às 5 ou 6 da  Dr. G.M.: Sim. Não calcula o que há de
         manhã, com a mesma luminosidade da meia  heróico e de científico no ir até 70º N, apenas  R.A.: Essa comissão foi decisiva na sua luta
         noite, levantavam-se e engoliam umas chávenas  com uns «paninhos» nos mastros. Mas mesmo  contra a tuberculose?
         de café com um pedaço de pão, e logo ape-  arrastões que dispunham de máquinas não eram
         trechavam o seu dóri que arriavam à força de  poupados.                 Dr. G.M.: Um flagelo a que dediquei 24 anos
         braços para, à vela ou a remos, se afastarem de  Enfim, de olho na menor descida acentuada  como militar e na vida civil, como director clínico
         4 a 6 milhas em busca de um bom pesqueiro.  do barómetro ou escutando os boletins metereo-  de uma casa de saúde.
           De pé, iniciavam a pescaria azagaiando o  lógicos, pois muitos lugres já dispunham de TSF,
         bacalhau até que cheios vinham descarregá-lo  que também reparávamos, vivia-se, sem falar  R.A.: Que a Armada, na Assistência aos seus
         nos quetes, anotando o capitão ou o imediato os  dos nevões, no pavor das ... tempestades.  Tuberculosos (ATA) e depois das Forças Armadas
         quintais pescados, de 80 a 300 por dia, antes de                      (ATFA), tão bem conhece e publicamente reco-
         voltarem de novo à faina.            R.A.: E que é que amenizava tanta a adversi-  nheceu. Muito agradecidos, Senhor Almirante,
           Um momento desejado é o do sinal de que o  dade.                    pela sua jovial disponibilidade.
                                                                                       REVISTA DA ARMADA • MAIO 2001  13
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