Page 306 - Revista da Armada
P. 306
A MARINHA DE D. MANUEL (18)
Os Reis do Malabar
Os Reis do Malabar
data em que Cabral entrava em Pêro de Ataíde que o perseguiu e combateu regimento – pediu imensa desculpa ao
Calecut, o Samorim era o sucessor em frente à praia de Cananor (um pequeno mappila de Cochin cobrindo-o de todas as
À do que recebera o Gama, dois anos reino fronteiriço e rival a norte de Calecut). promessas que já fizera a outros, falando--lhe
antes. Mas tudo leva a crer que os proble- Na verdade, no navio apresado havia vários d’el-rei de Portugal que com eles queria ter
mas são semelhantes, embora o poder mili- elefantes que não interessavam muito aos comércio honesto e amizade, apenas fazendo
tar naquela altura fosse muito superior ao portugueses, e o episódio acabou por criar a guerra aos mouros de Meca (árabes).
que ali tinha estado em 1498. Muito ainda mais pro-
provavelmente houve muitas conversas blemas em Cale-
antes da partida de Lisboa, muitos conse- cute, sobretudo
lhos, muitas indicações e sugestões, mas a por pressão dos
verdade é que os portugueses estavam a mapillas dessa ci-
contactar uma comunidade que desconhe- dade que, a par-
ciam quase em absoluto. Passe o facto de tir de então, se
terem disparado a artilharia à entrada do temeram. Parece
porto nos mesmos moldes em que salvavam óbvio que, se os
na Europa, e espalhado o pânico pela ci- nossos desconhe-
dade, causando, eventualmente, algum ciam muitas das
desagrado (mas, se calhar, também temor), questões pró-
os dias que se seguiram foram uma prias do Mala-
sucessão de contrariedades que resultavam bar, quer nos
num arrastar penoso das negociações, crian- seus usos e cos-
do uma enorme impaciência ao portugue- tumes, quer até
ses. A missão de Cabral – recordamo-lo – em aspectos da
era conseguir estabelecer boas relações com organização
o Samorim de Calecut, colocar ali uma feito- social e da ma-
ria comercial portuguesa e encetar um neira de viver
processo de comércio de especiarias que dos locais, o que Figuras da sociedade indiana, segundo Jan Huygen van Linschoten.
chegaria à Europa pela rota do cabo. Mas é facto é que de- Gravura do final do séc. XVI.
para romper todas as desconfianças, era pre- les a desconfian-
ciso explicar convincentemente estes inten- ça e a apreensão não deve ter sido menor. O que é certo é que os reis de Cochim e de
tos ao Samorim e, para isso, necessitavam de Quando foi tomada a nau dos elefantes (que Cananor, no meio destes episódios mais
traduzir as mensagens de português para o Samorim tinha dito estar carregada de ou menos violentos, tinham-se apercebido
árabe, sendo depois traduzidas para hindu. pimenta) já estava estabelecida em terra a do poder militar dos portugueses e
Uma dupla tradução que empregava gente dita feitoria, mas com uma posição muito imediatamente compreenderam as vanta-
em quem não havia absoluta confiança de fragilizada. Debaixo de promessas mal gens de fazer com eles alianças que lhes
parte a parte e que sempre provocou dúvi- compreendidas ou de enganos fosse de permitiriam diminui a supremacia do
das. O que é certo é que os portugueses que- quem fosse, correu o boato de que os navios Samorim. E dentro deste contexto, com os
riam carregar especiaria, e essa era também de Meca estavam a ser carregados de noite, navios por carregar e depois de ter bom-
a intenção dos chamados navios de Meca deixando os portugueses sem carga, com bardeado Calecut, Cabral resolve deslo-
(árabes) e do Guzerate, nalguns casos com respostas dilatórias trocadas no meio de car-se a Cochim, onde é bem acolhido,
influências poderosas sobre o soberano, ao tradutores múltiplos que agravavam ainda onde carrega pimenta e canela e onde
ponto de o manobrarem contra os portu- mais a desconfiança e impaciência. Deci- recebe embaixadores dos reinos de
gueses. Por isso não foi só o mau impacte diram então, os portugueses atacar uma das Cananor e Coulão pedindo-lhe amizade e
dos disparos de salva que criaram má naus que supunham carregadas, mas o vantagens numa próxima visita. Os
impressão. Outras razões existiam e se resultado foi desastroso. A bordo não havia navios ainda passaram pelo primeiro
desenvolviam para que a feitoria não se especiaria como eles imaginaram e levan- destes dois portos, partindo para Lisboa
fizesse e se atrasasse o carregamento da tou-se uma imensa revolta no porto, contra com dois emissários do rei. A viagem não
especiaria. os nossos marinheiros e os homens da feito- fora propriamente um sucesso – em 12
Assim ia passando o tempo, quando o ria. Aires Correia, o feitor nomeado, foi navios saídos de Lisboa, apenas regres-
Samorim propõe aos portugueses que lhe abatido, e com ele umas dezenas de com- savam seis, dos quais um ainda se perde-
prestem um serviço: saíra de Cochim (a sul) panheiros. Para Pedro Álvares Cabral, isto ria no Índico e outro viria a aparecer em
um navio propriedade de um mercador era a gota que transbordava de um copo de Cabo Verde, depois de ter andado a nave-
mappila (muçulmano não árabe, pertencente impaciência. De seguida bombardeou a gar sozinho durante meses - mas a ver-
à comunidade de comerciantes do Guzerate) praia e toda a cidade de Calecut, durante dade é que o valor da especiaria desem-
dessa cidade, que transportava um elefante um dia inteiro, causando mais de quinhen- barcada pagava bem o prejuízo e o negó-
que recusara vender ao Samorim; o sobera- tos mortos. cio entusiasmava.
no, mostrando o seu despeito por não ter Mas, entretanto, quando da tomada da
conseguido a alimária, pediu a Cabral que nau dos elefantes, Cabral verificou que o J. Semedo de Matos
tomasse esse navio. Foi encarregado disso navio não era árabe e – como lhe dizia o CFR FZ
16 SETEMBRO/OUTUBRO 2001 • REVISTA DA ARMADA