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A MARINHA DE D. MANUEL (18)




                               Os Reis do Malabar
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               data em que Cabral entrava em  Pêro de Ataíde que o perseguiu e combateu  regimento – pediu imensa desculpa ao
               Calecut, o Samorim era o sucessor  em frente à praia de Cananor (um pequeno  mappila de Cochin cobrindo-o de todas as
         À do que recebera o Gama, dois anos  reino fronteiriço e rival a norte de Calecut).  promessas que já fizera a outros, falando--lhe
         antes. Mas tudo leva a crer que os proble-  Na verdade, no navio apresado havia vários  d’el-rei de Portugal que com eles queria ter
         mas são semelhantes, embora o poder mili-  elefantes que não interessavam muito aos  comércio honesto e amizade, apenas fazendo
         tar naquela altura fosse muito superior ao  portugueses, e o episódio acabou por criar  a guerra aos mouros de Meca (árabes).
         que ali tinha estado em 1498. Muito  ainda mais pro-
         provavelmente houve muitas conversas  blemas em Cale-
         antes da partida de Lisboa, muitos conse-  cute, sobretudo
         lhos, muitas indicações e sugestões, mas a  por pressão dos
         verdade é que os portugueses estavam a  mapillas dessa ci-
         contactar uma comunidade que desconhe-  dade que, a par-
         ciam quase em absoluto. Passe o facto de  tir de então, se
         terem disparado a artilharia à entrada do  temeram. Parece
         porto nos mesmos moldes em que salvavam  óbvio que, se os
         na Europa, e espalhado o pânico pela ci-  nossos desconhe-
         dade, causando, eventualmente, algum  ciam muitas das
         desagrado (mas, se calhar, também temor),  questões pró-
         os dias que se seguiram foram uma  prias do Mala-
         sucessão de contrariedades que resultavam  bar, quer nos
         num arrastar penoso das negociações, crian-  seus usos e cos-
         do uma enorme impaciência ao portugue-  tumes, quer até
         ses. A missão de Cabral – recordamo-lo –  em aspectos da
         era conseguir estabelecer boas relações com  organização
         o Samorim de Calecut, colocar ali uma feito-  social e da ma-
         ria comercial portuguesa e encetar um  neira de viver
         processo de comércio de especiarias que  dos locais, o que  Figuras da sociedade indiana, segundo Jan Huygen van Linschoten.
         chegaria à Europa pela rota do cabo. Mas  é facto é que de-         Gravura do final do séc. XVI.
         para romper todas as desconfianças, era pre-  les a desconfian-
         ciso explicar convincentemente estes inten-  ça e a apreensão não deve ter sido menor.  O que é certo é que os reis de Cochim e de
         tos ao Samorim e, para isso, necessitavam de  Quando foi tomada a nau dos elefantes (que  Cananor, no meio destes episódios mais
         traduzir as mensagens de português para  o Samorim tinha dito estar carregada de  ou menos violentos, tinham-se apercebido
         árabe, sendo depois traduzidas para hindu.  pimenta) já estava estabelecida em terra a  do poder militar dos portugueses e
         Uma dupla tradução que empregava gente  dita feitoria, mas com uma posição muito  imediatamente compreenderam as vanta-
         em quem não havia absoluta confiança de  fragilizada. Debaixo de promessas mal  gens de fazer com eles alianças que lhes
         parte a parte e que sempre provocou dúvi-  compreendidas ou de enganos fosse de  permitiriam diminui a supremacia do
         das. O que é certo é que os portugueses que-  quem fosse, correu o boato de que os navios  Samorim. E dentro deste contexto, com os
         riam carregar especiaria, e essa era também  de Meca estavam a ser carregados de noite,  navios por carregar e depois de ter bom-
         a intenção dos chamados navios de Meca  deixando os portugueses sem carga, com  bardeado Calecut, Cabral resolve deslo-
         (árabes) e do Guzerate, nalguns casos com  respostas dilatórias trocadas no meio de  car-se a Cochim, onde é bem acolhido,
         influências poderosas sobre o soberano, ao  tradutores múltiplos que agravavam ainda  onde carrega pimenta e canela e onde
         ponto de o manobrarem contra os portu-  mais a desconfiança e impaciência. Deci-  recebe embaixadores dos reinos de
         gueses. Por isso não foi só o mau impacte  diram então, os portugueses atacar uma das  Cananor e Coulão pedindo-lhe amizade e
         dos disparos de salva que criaram má  naus que supunham carregadas, mas o  vantagens numa próxima visita. Os
         impressão. Outras razões existiam e se  resultado foi desastroso. A bordo não havia  navios ainda passaram pelo primeiro
         desenvolviam para que a feitoria não se  especiaria como eles imaginaram e levan-  destes dois portos, partindo para Lisboa
         fizesse e se atrasasse o carregamento da  tou-se uma imensa revolta no porto, contra  com dois emissários do rei. A viagem não
         especiaria.                        os nossos marinheiros e os homens da feito-  fora propriamente um sucesso – em 12
           Assim ia passando o tempo, quando o  ria. Aires Correia, o feitor nomeado, foi  navios saídos de Lisboa, apenas regres-
         Samorim propõe aos portugueses que lhe  abatido, e com ele umas dezenas de com-  savam seis, dos quais um ainda se perde-
         prestem um serviço: saíra de Cochim (a sul)  panheiros. Para Pedro Álvares Cabral, isto  ria no Índico e outro viria a aparecer em
         um navio propriedade de um mercador  era a gota que transbordava de um copo de  Cabo Verde, depois de ter andado a nave-
         mappila (muçulmano não árabe, pertencente  impaciência. De seguida bombardeou a  gar sozinho durante meses - mas a ver-
         à comunidade de comerciantes do Guzerate)  praia e toda a cidade de Calecut, durante  dade é que o valor da especiaria desem-
         dessa cidade, que transportava um elefante  um dia inteiro, causando mais de quinhen-  barcada pagava bem o prejuízo e o negó-
         que recusara vender ao Samorim; o sobera-  tos mortos.                cio entusiasmava.
         no, mostrando o seu despeito por não ter  Mas, entretanto, quando da tomada da
         conseguido a alimária, pediu a Cabral que  nau dos elefantes, Cabral verificou que o      J. Semedo de Matos
         tomasse esse navio. Foi encarregado disso  navio não era árabe e – como lhe dizia o               CFR FZ

         16 SETEMBRO/OUTUBRO 2001 • REVISTA DA ARMADA
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