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A MARINHA DE D. MANUEL (12)



                        A travessia do Índico
                        A travessia do Índico






               5 de Outubro de 1498, depois de  o descreveu também, no estudo náutico  já aí piloto nem homem que cartear soubesse,
               todos os incidentes relatados,  que fez desta viagem e parece lógico, se  para saber em que paragem éramos”. A 3 de
         AVasco da Gama faz-se à vela de    seguirmos o que pensaria um piloto expe-  Janeiro de 1499, estavam perto de Moga-
         regresso a Portugal. Estava em Angediva  rimentado que conhecesse aquelas para-  díscio, cidade que avistaram e identi-
         (15º 21’ N) e confiava nos seus pilotos para  gens apenas de umas vagas informações  ficaram, talvez com a ajuda de cativos
         tomar o caminho de África e depois de  recolhidas na viagem de ida.   africanos que tinham a bordo.
         Lisboa. O que saberia ele sobre esse cami-  O que aconteceu de facto foi que estive-  Tomaram o caminho do sul, com vento
         nho?... Sabia que tinha feito a viagem de  ram demasiado tempo no mar, com carên-  de popa, navegando de dia e pairando de
         Melinde para Calecut navegando ao  cia de alimentos frescos e (provavelmente)  noite, dadas as incertezas quanto ao cami-
         Nordeste até ao (hoje chamado) canal dos  de água, aparecendo a bordo uma doença  nho e, muito provavelmente, pela grande
         nove graus (entre Maldivas e Laquedivas),  mortal que ficou conhecida por escorbuto.  falta de pessoal que já os devia afrontar.
         de onde guinaram para norte até Calecut.  Esta doença, que viria a ser conhecida de  Alcançaram Melinde em 7 de Janeiro,
         Depois deslocaram-se ao longo da costa  forma dramática por todos os que anda-  onde, finalmente, tiveram refresco de
         até chegarem a Angediva. Sabiam pois a  vam no mar em longas viagens, era devida  víveres, frutas e carne fresca, graças à
         latitude em que se encontravam e sabiam a  à carência de vitaminas (em especial a vita-  amizade do rei local que já os recebera
         latitude de Melinde e de outros locais que  mina C) que só existem nos alimentos  bem à ida. Colocaram um padrão em terra
         tinham abordado em África,                                                      e largaram passados cinco
         na viagem de ida. Parece-me                                                     dias, continuando a viagem
         pois natural que, ao deixarem                                                   para sul até aos baixos onde,
         a costa indiana, fossem reto-                                                   à ida, tinha encalhado a S.
         mar latitudes mais baixas,                                                      Rafael. Nessa altura – quer
         navegando em rumos de                                                           pelos mortos na travessia,
         sudoeste ou es-sudoeste.                                                        quer por todos aqueles que
         Digamos que é a tendência                                                       não tinha sido possível sal-
         natural de um piloto que pela                                                   var, mesmo com o refresco
         primeira vez está a navegar                                                     em Melinde – a falta de pes-
         naquelas paragens: seguir                                                       soal para a manobra dos
         um caminho que vá ao en-                                                        navios era insustentável. O
         contro dos locais já conhe-                                                     Capitão decidiu transferir a
         cidos. Porém, este desvio                                                       tripulação da S. Rafael para
         para sul teve vários inconve-                                                   os outros navios e incendiou
         nientes que foram fatais para                                                   a nau, depois de lhe ter retira-
         muitos marinheiros e podiam                                                     do a imagem do santo pa-
         ter levado à perda da es-                                                       droeiro que ainda hoje está
         quadra. A monção de nor-                                                        no Museu de Marinha
         deste (Hemisfério Norte) só                                                       Algumas conjecturas têm
         se declara mais para o final                                                    sido tecidas acerca desta tra-
         do ano e, quanto mais para                                                      vessia e de uma eventual re-
         sul os navios estão, mais  A África num planisfério português de 1502 (Cantino). As bandeiras junto à costa oriental  belião vivida a bordo. O
         tarde ela chega. Ou seja,      (com excepção da que está à entrada do Mar Vermelho) marcam os locais   Relato nada nos diz sobre o
         perto do Equador, naquela                 por onde passou Vasco da Gama.        assunto, mas os cronistas
         altura do ano e naquele local,                                                  posteriores a ela se referem
         os navios vão encontrar ventos predomi-  frescos. Manifestava-se pelo aparecimento  com maior ou menor dramatismo. Pode
         nantes de sudoeste e calmarias. Even-  de uma coloração anormal na face e pelo  dever-se esta lenda a duas razões: pode ter
         tualmente, podem aproveitar aragens  inchaço progressivo da gengivas, que se  uma base verdadeira que foi sendo mitifi-
         locais, de fraca intensidade e duração, que  tornavam dolorosas, produzindo um háli-  cada pelos tempos, ou pode ser apenas um
         possam ajudar à travessia, mas é coisa  to desagradável. A pouco e pouco o mau  mito nascido e desenvolvido no meio
         esporádica e insegura.             cheiro da boca tornava-se insuportável, as  naval do século XVI. A estrutura do mito
           O Relato de que temos vindo a falar, diz  gengivas sangravam, os dentes caiam, o  dá a ideia de que houve quem quisesse
         que partiram numa sexta-feira dia 5 de  corpo inchava também e a morte surgia  desistir de seguir o caminho, mas a von-
         Outubro e acrescenta: “Andámos tanto  irremediavelmente, caso não se alcançasse  tade de Vasco da Gama impôs-se, pondo a
         tempo em esta travessa que três meses menos  um porto onde a avitaminose fosse com-  ferros quem se revoltou. Parece-me ser
         três dias gastámos nela; isto com muitas cal-  pensada. Ora nestes três meses de traves-  uma história que se desenvolveu, sobretu-
         marias e ventos contrários que em ela achá-  sia morreram trinta homens e alguns deles  do, com o intuito de glorificar o navegador
         mos”. Esta descrição está de acordo com o  foram certamente alguns pilotos  porque –  e servir de exemplo aos marinheiros que se
         regime de ventos descrito e corrobora a  de acordo com o relato – quando che-  lhe seguiram.
         ideia de que a esquadra tomou um cami-  garam perto da costa africana “fomos
         nho de sudoeste e sul, até latitudes perto  demandar a terra para sabermos onde Nosso    J. Semedo de Matos
         do Equador. Gago Coutinho assim mesmo  Senhor nos tinha lançado, porquanto não havia              CTEN FZ

         16 MARÇO 2001 • REVISTA DA ARMADA
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