Page 90 - Revista da Armada
P. 90
A MARINHA DE D. MANUEL (12)
A travessia do Índico
A travessia do Índico
5 de Outubro de 1498, depois de o descreveu também, no estudo náutico já aí piloto nem homem que cartear soubesse,
todos os incidentes relatados, que fez desta viagem e parece lógico, se para saber em que paragem éramos”. A 3 de
AVasco da Gama faz-se à vela de seguirmos o que pensaria um piloto expe- Janeiro de 1499, estavam perto de Moga-
regresso a Portugal. Estava em Angediva rimentado que conhecesse aquelas para- díscio, cidade que avistaram e identi-
(15º 21’ N) e confiava nos seus pilotos para gens apenas de umas vagas informações ficaram, talvez com a ajuda de cativos
tomar o caminho de África e depois de recolhidas na viagem de ida. africanos que tinham a bordo.
Lisboa. O que saberia ele sobre esse cami- O que aconteceu de facto foi que estive- Tomaram o caminho do sul, com vento
nho?... Sabia que tinha feito a viagem de ram demasiado tempo no mar, com carên- de popa, navegando de dia e pairando de
Melinde para Calecut navegando ao cia de alimentos frescos e (provavelmente) noite, dadas as incertezas quanto ao cami-
Nordeste até ao (hoje chamado) canal dos de água, aparecendo a bordo uma doença nho e, muito provavelmente, pela grande
nove graus (entre Maldivas e Laquedivas), mortal que ficou conhecida por escorbuto. falta de pessoal que já os devia afrontar.
de onde guinaram para norte até Calecut. Esta doença, que viria a ser conhecida de Alcançaram Melinde em 7 de Janeiro,
Depois deslocaram-se ao longo da costa forma dramática por todos os que anda- onde, finalmente, tiveram refresco de
até chegarem a Angediva. Sabiam pois a vam no mar em longas viagens, era devida víveres, frutas e carne fresca, graças à
latitude em que se encontravam e sabiam a à carência de vitaminas (em especial a vita- amizade do rei local que já os recebera
latitude de Melinde e de outros locais que mina C) que só existem nos alimentos bem à ida. Colocaram um padrão em terra
tinham abordado em África, e largaram passados cinco
na viagem de ida. Parece-me dias, continuando a viagem
pois natural que, ao deixarem para sul até aos baixos onde,
a costa indiana, fossem reto- à ida, tinha encalhado a S.
mar latitudes mais baixas, Rafael. Nessa altura – quer
navegando em rumos de pelos mortos na travessia,
sudoeste ou es-sudoeste. quer por todos aqueles que
Digamos que é a tendência não tinha sido possível sal-
natural de um piloto que pela var, mesmo com o refresco
primeira vez está a navegar em Melinde – a falta de pes-
naquelas paragens: seguir soal para a manobra dos
um caminho que vá ao en- navios era insustentável. O
contro dos locais já conhe- Capitão decidiu transferir a
cidos. Porém, este desvio tripulação da S. Rafael para
para sul teve vários inconve- os outros navios e incendiou
nientes que foram fatais para a nau, depois de lhe ter retira-
muitos marinheiros e podiam do a imagem do santo pa-
ter levado à perda da es- droeiro que ainda hoje está
quadra. A monção de nor- no Museu de Marinha
deste (Hemisfério Norte) só Algumas conjecturas têm
se declara mais para o final sido tecidas acerca desta tra-
do ano e, quanto mais para vessia e de uma eventual re-
sul os navios estão, mais A África num planisfério português de 1502 (Cantino). As bandeiras junto à costa oriental belião vivida a bordo. O
tarde ela chega. Ou seja, (com excepção da que está à entrada do Mar Vermelho) marcam os locais Relato nada nos diz sobre o
perto do Equador, naquela por onde passou Vasco da Gama. assunto, mas os cronistas
altura do ano e naquele local, posteriores a ela se referem
os navios vão encontrar ventos predomi- frescos. Manifestava-se pelo aparecimento com maior ou menor dramatismo. Pode
nantes de sudoeste e calmarias. Even- de uma coloração anormal na face e pelo dever-se esta lenda a duas razões: pode ter
tualmente, podem aproveitar aragens inchaço progressivo da gengivas, que se uma base verdadeira que foi sendo mitifi-
locais, de fraca intensidade e duração, que tornavam dolorosas, produzindo um háli- cada pelos tempos, ou pode ser apenas um
possam ajudar à travessia, mas é coisa to desagradável. A pouco e pouco o mau mito nascido e desenvolvido no meio
esporádica e insegura. cheiro da boca tornava-se insuportável, as naval do século XVI. A estrutura do mito
O Relato de que temos vindo a falar, diz gengivas sangravam, os dentes caiam, o dá a ideia de que houve quem quisesse
que partiram numa sexta-feira dia 5 de corpo inchava também e a morte surgia desistir de seguir o caminho, mas a von-
Outubro e acrescenta: “Andámos tanto irremediavelmente, caso não se alcançasse tade de Vasco da Gama impôs-se, pondo a
tempo em esta travessa que três meses menos um porto onde a avitaminose fosse com- ferros quem se revoltou. Parece-me ser
três dias gastámos nela; isto com muitas cal- pensada. Ora nestes três meses de traves- uma história que se desenvolveu, sobretu-
marias e ventos contrários que em ela achá- sia morreram trinta homens e alguns deles do, com o intuito de glorificar o navegador
mos”. Esta descrição está de acordo com o foram certamente alguns pilotos porque – e servir de exemplo aos marinheiros que se
regime de ventos descrito e corrobora a de acordo com o relato – quando che- lhe seguiram.
ideia de que a esquadra tomou um cami- garam perto da costa africana “fomos
nho de sudoeste e sul, até latitudes perto demandar a terra para sabermos onde Nosso J. Semedo de Matos
do Equador. Gago Coutinho assim mesmo Senhor nos tinha lançado, porquanto não havia CTEN FZ
16 MARÇO 2001 • REVISTA DA ARMADA