Page 344 - Revista da Armada
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Como populações itinerantes, cedo se
aperceberam que o transporte de um BACALHAU - ELO DE LIGAÇÃO ENTRE AS
abrigo sólido não era viável. Tornaram-se ILHAS LOFOTEN E O MEDITERRÂNEO
assim especialistas na construção dos Nas suas viagens comerciais ao longo das
igloos com paralelepípedos de gelo, costas Atlânticas em direcção ao Norte, os mer-
matéria-prima inesgotável. Relativamente cadores Mediterrânicos entraram em contacto
a estas construções é bom relembrar que com povos da área do Mar do Norte e do Báltico,
relações essas que em alguns casos se mantive-
as temperaturas mínimas do ar no Árctico ram até aos nossos dias. Paradigmático foi o caso
podem atingir os – 65°C, embora a tem- do navio de Pietro Querini, navegador e patrício
peratura dos pavimentos de gelos maríti- veneziano, que naufragou no fim de Dezembro
mos, não desça abaixo de uns “amenos” de 1431 em Sandøy, ilhéu desabitado próximo de
Røst, no extremo Sudoeste do arquipélago das
2°C, temperatura correspondente à con- Lofoten ao largo de Bodø na Noruega, tendo a
gelação da água salgada. Criaram igual- sua tripulação sido salva e muito bem recebida
mente grande mobilidade usando mate- pelos locais no início do ano seguinte. Perante tão
riais leves para a construção e recons- cordial acolhimento, os marinheiros resolveram
ir ficando. Tal facto repercutiu-se, passados
trução dos seus barcos rudimentares mas
alguns meses, num aumento assinalável da po-
eficientes, possibilitando o seu transporte pulação local. No entanto, para além dos laços de
a grandes distâncias. intimidade e não esquecendo o verdadeiro fim
da viagem, Pietro Querini trouxe vários tipos de
PRIMEIROS CONTACTOS COM OS bacalhau para Itália onde, com o passar dos anos,
este peixe do Árctico se tornou a base de um
POVOS DO SUL prato tradicional de grande fama. Inicia-se assim
o seu comércio que hoje, com o turismo, repre-
Fig. 4 – Saami trabalhando a madeira. Os contactos iniciais dos nativos das senta as principais fontes de receitas do
arquipélago.
áreas Boreais, que as habitavam há mi- Presentemente a ilha de Sandøy passou a
tenham chegado ao Alasca de barco de lhares de anos, com os habitantes do denominar-se Sandrigøya, i.e.ilha de Sandrigo,
pele, através do Estreito de Bering, cerca de Continente Europeu desenvolveram-se em honra deste município do Veneto, onde existe
24.000 A.C., época em que a passagem era através de frades Irlandeses - como S. uma praça com o nome de Røst. Recentemente
relativamente fácil, tendo posteriormente Brandão - que em 800 D.C. se estabelece- foi inaugurado nas Lofoten um monumento ao
rumado a Norte seguindo a caça de cuja ram na Islândia; comerciantes de carne de longínquo naufrágio de 1431, que proporcionou
uma fraterna e longa amizade e relações comer-
carne dependia a sua alimentação e mobili- foca, peles e óleos, aventureiros mais ciais sólidas entre comunidades tão distantes.
dade, dado ser também a comida dos cães. curiosos ou caçadores de baleias e focas,
As deslocações eram feitas de ternós no limitando-se principalmente à bacia do
Inverno e de kayak e umiaq, canoas de Mar do Norte e às ilhas limítrofes (Hé- seguiu a intuição de um distante Norte a
casco de pele, no Verão. Quando chegaram bridas, Orkneys, Shetland, Faroern e, pos- explorar terá sido Pitèa, nascido na área de
à Groenlândia cerca de 1.200 D.C., contac- teriormente, Islândia). Marselha na segunda metade do Sec. IV
taram provavelmente com outros povos Grande parte das referências apoia-se A.C., que empreendeu uma longa viagem
vindos da Escandinávia. em escritos de base religiosa de difícil ve- de comércio através da Europa do Norte
Os primeiros Esquimós, além de apas- rificação, mas que numa análise lata na procura das terras de origem do âmbar
centarem os seus rebanhos para sobre- podem aceitar-se no limite como factuais. e do estanho, preciosidades da época. A
viverem, deveriam ser bons pescadores e Nas relacionadas com a chegada à sua viagem é reconstruível desde a ilha de
caçadores de ursos, lobos, caribus, focas, Islândia, um relato de 825 D.C. afirma que Ouessant, ao largo de Brest, de onde
baleias e outros mamíferos marinhos, não havia luz do dia no Inverno, mas de largou para a Inglaterra, ilha que em parte
disponíveis em grandes quantidades na Verão, mais prosaicamente, havia tanta circum-navegou atingindo o seu extremo
época. Deles se alimentavam e utilizavam que se podiam catar os piolhos na roupa Norte. Aqui teve contactos ao longo das
as peles para indumentos, como as como se fosse de dia. costas com diversos comerciantes do
“parkas”, e para casco de barcos, e os ossos A História das viagens de portugueses estanho, pressentindo ser este território
para o fabrico de ferramentas, utensílios e nas costas da Terra Nova e do Mar de uma ilha. Admitiu a hipótese de uma
apetrechos, como o útil arpão articulado Labrador ainda não foi factualmente outra ilha, que nomeou de “Tule”, situada
cuja cabeça se destacava da haste após esclarecida sendo no entanto provável que ao largo em posição não precisamente
entrar na presa. A madeira era quase inexis- João Fernandes Lavrador, nascido na pas- definida, a partir da qual não seria possível
tente e o uso do sílex sempre problemático. sagem do Séc XV para o XVI, tenha, de navegar. O relato da sua viagem foi feito
Os óleos e gorduras animais tinham va- qualquer modo,
riados usos, especialmente na iluminação, participado no pro-
no aquecimento e na impermeabilização. jecto, eventualmen-
Admite-se que, numa primeira fase, estes te ligado a uma
povos na procura de caça apenas se deslo- viagem de Pêro de
cassem temporariamente por curtos perío- Barcelos ou a de
dos para Norte, aproveitando as tempera- navegadores ingle-
turas mais amenas dos Verões mais ses de Brístol. De
quentes. Com a evolução da sua capacidade concreto ficou o
de sobrevivência em zonas de tão poucos nome, não certa-
recursos, a duração destas transumâncias mente ligado à
(Fig. 5) foi-se dilatando. Nota-se que no agricultura local,
Árctico não existe agricultura, estando as internacionalmente
áreas próximas dos glaciares cobertas de aceite.
“permafrost”, nome dado aos solos com É geralmente
temperaturas permanentemente abaixo dos admitido que o pri-
0°C. Esta é uma das razões que levam à meiro homem do
inexistência de répteis neste Continente. Mediterrâneo que Fig. 5 – Renas aguardando a passagem a nado para a zona continental.
18 NOVEMBRO 2002 • REVISTA DA ARMADA