Page 350 - Revista da Armada
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Arquivo CTEN António Gonçalves













         Caravelas redondas do Livro das Armadas pertencentes à armada de D. Pedro de Castel Branco (1533), em mareações diversas. Note-se a existência do botaló.
         tificar inúmeros exemplos das técnicas e con-  perioso dispor de pesadas peças de artilharia   11  Cabos colocados horizontalmente em ligação aos
         tributos que fomos descrevendo, e que, como  a bordo, estes dois factores conjugados, dizía-  ovéns formando como que degraus a intervalos iguais,
         vimos, foram sendo desenvolvidos ao longo  mos, levou ao aumento das dimensões dos na-  tanto com o objectivo de consolidar a enxárcia como
                                                                               permitir que através deles se aceda à parte mais alta
         do tempo por diferentes povos. Cumpre em  vios, no caso vertente das caravelas redondas.   da mastreação. O navio-escola Sagres possui nas res-
         abono da verdade registar que o termo carave-  A imposição de um centro de gravidade baixo,   pectivas enxárcias réguas de madeira em vez de ca-
         la, que durante séculos foi aparecendo inscri-  como forma de não comprometer a estabilida-  bos de passadeira.
                                                                                 12  Voltaremos a esta questão com mais pormenor
         to na mais diversa documentação, foi também  de, conduziu ao aumento do pontal, e do cala-
         sendo sinónimo de diferentes tipos de navios  do, permitindo a existência de vários pavimen-  quando abordarmos as principais diferenças entre o
                                                                               pano redondo e o pano latino.
         e embarcações, começando desde logo pelas  tos (cobertas) no seu interior. Se numa primeira   13  Conhecida como vela de bastardo, que nalguns
         suas dimensões e possível utilização. No en-  análise este aumento da capacidade de carga   casos pode ser quadrangular.
         tanto, na nossa despretensiosa apreciação, foi  foi de encontro aos anseios de comerciantes   14  Mizzen ou mizen (inglês), mesana (castelhano),
         João da Gama Pimentel Barata quem conseguiu  e armadores, por outro lado a mais elementar   mezzana (italiano), besan (alemão), bezaan (holan-
                                                                               dês), mesan (dinamarquês), mizana (turco) e metzana
         descrever a utilização da caravela de uma for-  ignorância relativa aos verdadeiros limites da   (grego).  Na língua francesa este mastro/vela assume a
         ma tão simples quanto definitiva: «Este navio  estiva de cada navio terá constituído razão so-  denominação artimon, sendo o termo misaine utilizado
         elegante, harmonioso, teve uma vida de cinco  beja para levar muitos à sua perda.  para designar o mastro mais a vante (traquete), bem
         séculos, durante os quais foi pescador, comer-                     Z  como a vela de papa-figos correspondente. Este último
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         ciante, guerreiro e pioneiro» . O seu pequeno   António Manuel Gonçalves  termo aplicado a um navio de pano latino dá também
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         calado, aliado a uma manobra simples e a uma                    CTEN  quadrangular que nele se encontra envergada.
         capacidade de carga adequada, terão constituí-       am.sailing@hotmail.com  15  Na ausência de elementos mais válidos, não nos
         do trunfos fundamentais para a sua utilização   Bibliografia sumária:  parece desprovida de plausibilidade que esta acessó-
         nas viagens de exploração de costas, ilhas, rios   Cogs, Caravels and Galleons – The Sailing Ship   ria utilização do botaló possa ter estado na origem do
         e baixos desconhecidos.            1000-1650, coord. Richard W. Unger, Londres,   aparecimento do pau de surriola.
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           Convém referir que a vela latina utilizada nos   Conway, 1994.      enverga no mastro ou na verga) encontra-se associa-
                                              Francisco Contente Domingues, Os Navios do Mar
         dhows, nas caravelas e noutros navios do Me-  Oceano – Teoria e empiria na arquitectura naval por-  do à força de propulsão enquanto que o comprimento
         diterrâneo possibilitava navegar mais chegado   tuguesa dos séculos XVI e XVII, Lisboa, Centro de His-  da valuma (lado da vela latina que diz para ré) dita a
         ao vento e acima de tudo veio tornar prática a   tória da Universidade de Lisboa, 2004.  força responsável pelo adornamento do navio. Como
         manobra de virar de bordo por davante. Este   Werner Lahn, Die Kogge von Bremen, vol. I, Ham-  forma de potenciar este efeito, os barcos da célebre
                                                                               Taça América aparecem com mastros tão despropor-
         último factor cedo se revelou crucial, nomea-  burgo, Deutsches Schiffahrts-museum, 1992.  cionados, atingindo os 35 metros de altura.
         damente em locais confinados, pois o navio   Notas:                      17  Quénia, Moçambique, Arábia Saudita, Kuwait,
         no decorrer da manobra não perde barlaven-  1  Cada conjunto destas ferragens é composto por um   Iémen, etc.
                                                                                 18  Nalguma documentação portuguesa este tipo de
         to. Por seu turno, a manobra de virar de bordo   macho e uma fêmea, num expediente análogo àquele   navio aparece referenciado como pangaio.
         por parte do navio de pano redondo – a coga   que encontramos numa vulgar porta, na sua relação com   19  Alan Villiers, Nos Domínios da Monção – A His-
         – só era possível fazendo passar a popa pela li-  a respectiva ombreira. As peças metálicas denominadas   tória do Oceano Índico, Porto, Livraria Civilização-
                                            machos são fixas por ante-a-ré da madre do leme, que
         nha do vento, conhecida por virar em roda. A   por sua vez se ajustam às fêmeas, solidamente ligadas ao   -Editora, 1957, pp. 109-110.
         única vantagem que daqui advém é o facto de   cadaste, garantindo o movimento de rotação. Num míni-  20  Alertamos para o facto de a manobra da vela latina
         ser uma manobra isenta de risco e não exigir   mo existirão dois pares de ferragens, sendo o seu número   não permitir a existência de castelos à proa.
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         grande coordenação, contrariamente ao virar   decidido em função das dimensões da porta do leme.  do forrando-o no exterior, nomeadamente ao nível das
                                               Conjunto de dois cabos fixos, um a cada lado da
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         por davante. O problema é que o navio perde   meia-lua do leme, ou na respectiva cana.  obras-vivas, com peles de bovino ou caprino, cobertas
         barlavento, o que pode tornar desaconselhada   3  Altura vertical desde a superfície da água até pa-  de breu. No entanto o mau tempo por vezes arrancava
         a sua prática em espaços reduzidos ou na pro-  vimento principal, por norma o convés.  esta protecção o que conduzia frequentemente à perda
                                              4  Prolongamento do costado acima do pavimento   dos navios. Só mais tarde foi introduzida a utilização
         ximidade de perigos. Em qualquer dos casos,                           de estopa (linho desfiado) e breu (matéria formada por
         para navegações com ventos constantes para ré   principal, por norma o convés.  pez, sebo e outras substâncias) para calafetar as costu-
                                               Como se sabe a reserva de flutuabilidade de um
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         do través a vela redonda é insubstituível. O que   navio é-nos dada pela relação entre o volume dos es-  ras do tabuado do costado e do convés. Também terá
         nos impele a concluir que o desenvolvimento   paços estanques fechados acima da linha de água e o   tido início na alta Idade Média a utilização de breu
         da caravela redonda , provavelmente em fi-  volume total do navio, expressa em percentagem.  como forma de proteger o aparelho do navio, com es-
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                                              6  Vigas horizontais que se apoiam, através dos es-  pecial destaque para os ovéns.
         nais do século XV, mais não constituiu do que   quadros, nos dois ramos de uma mesma baliza. A sua   22  Os estudos linguísticos aparentemente compro-
         uma tentativa para combinar, num único navio   função é servir de apoio ao tabuado que constitui os   vam que o vocábulo caravela só poderia formar-se
         de considerável porte, as vantagens certamen-  pavimentos.            na língua portuguesa, o que desde logo deixa pouca
         te à época reconhecidas aos diferentes tipos de   7  Neste caso concreto é a peça que garante uma   margem para que o seu desenvolvimento possa ter
         velas e aparelhos. E a avaliar pelo período em   sólida ligação do vau à baliza.  ocorrido noutras paragens. Apesar de contar, como
                                              8  Colunas verticais colocadas em apoio dos vaus   vimos, com muitas influências da mais diversa ori-
         que se manteve ao serviço também este tipo de   como forma de consolidar a sua resistência, e do res-  gem. A sua mais antiga referência na documentação
         navio terá constituído um sucesso, pelo menos   pectivo pavimento.    data de 1255.
         na óptica da sua utilização mais comum: navio   9  Este tipo de navio foi utilizado no transporte co-  23  João da Gama Pimentel Barata, Estudos de Arqueo-
         de guerra e de transporte.         mercial pela Liga Hanseática, até finais do século XIV.   logia Naval, vol. II, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da
           Aparentemente a necessidade de transportar   O seu nome (cog) aparece na documentação coeva a   Moeda, 1989, pp. 32.
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                                            partir do século XII.
         mais carga, tal como se havia verificado com   10  Um navio de vela sem tombadilho diz-se de co-  no mastro mais a vante (traquete), permitia a existên-
         a coga, com a agravante de ser doravante im-  berta lavada.           cia de um castelo à proa.
         24  NOVEMBRO 2005 U REVISTA DA ARMADA
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