Page 347 - Revista da Armada
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TRAFALGAR mas não encontraram nada e regressaram até à dentro das regras que ele próprio considerava
zona de Cádiz, onde o comando dos navios foi adequadas: atacaria os espanhóis a partir de
Na realidade a paz assinada em Amiens em entregue a Collingwood, enquanto Nelson se uma posição a barlavento, dividindo a sua for-
Março de 1802 não passou de uma pequena deslocava a Portsmouth a bordo da “Victory”. ça em duas colunas que abordariam o inimigo
trégua de um ano, que permitiu ao Almirante Villeneuve regressou como estava previsto, a meio da sua formação, procurando desfazê-
retirar-se para uma quinta que tinha adquirido mas perto de Finisterra defrontou-se com uma -la e parti-la, para que tivesse de se empenhar
em Merton, descansando um pouco da intensa armada inglesa comandada pelo Almirante em combates singulares onde os seus navios
vida que levava há mais de uma década. As Calder. Na verdade a refrega não tinha tido da retaguarda já não podiam ser socorridos
hostilidades retomaram em 1803 e, pelos mais avançados. No dia 9
pouco tempo depois, Nelson seria de Outubro – e como já acontecera
nomeado comandante da esqua- antes – escreveu todas as instruções
dra do Mediterrâneo. O momento num memorandum que divulgou a
continuava a ser delicado para os todos os capitães. A manobra era
ingleses, na medida em que Bona- perigosa porque a aproximação ao
parte continuava a pensar na inva- inimigo seria feita sem possibilida-
são da Grã-Bretanha e no ataque a des de fazer fogo sobre ele (os na-
Londres, que poria fim ao que tinha vios não tinham capacidade de fogo
sido a maior resistência aos seus para vante), e expondo-se a toda a
planos imperiais. E é interessante extensão das suas baterias, mas era
observar aqui uma questão que se a única forma de os obrigar verda-
prende com a já referida diferen- deiramente a combater. Confiava
ça da maneira de pensar a guerra que a sua exposição não seria muito
em França e em Inglaterra: vimos demorada e, sobretudo, acreditava
como os ingleses se empenharam na resistência dos seus navios e na
persistentemente no ataque às es- perícia dos seus homens.
quadras francesas, procurando-as Os espanhóis saíram a 19 de Ou-
à saída dos próprios portos; as der- tubro navegando em direcção ao
rotas que infringiram tiveram uma sul (ao estreito) com vento oeste,
importância fulcral para a sua in- e de imediato foram avistados pe-
dependência, mas Napoleão nun- las fragatas inglesas que deram o
ca as valorizou na sua verdadeira alarme. A esquadra inglesa mano-
dimensão, porque entendia que brou tal como previra o seu expe-
tudo isso poderia ter fim nesse as- riente comandante, perseguindo o
salto e ocupação da velha Albion. inimigo até à madrugada do dia
Na verdade, para conseguir a al- 21, quando Villeneuve deu ordem
mejada invasão, precisava de do- para virar em roda e regressar a
minar o espaço marítimo do Canal norte. Esta manobra tem sido alvo
da Mancha durante o espaço ne- O Almihrante Lorde Nelson. de grandes controvérsias a que a
cessário ao movimento das tropas, Abbott – National Portrait Gallery. historiografia inglesa responde
e isso apresentava-se como impossível face ao grande importância, mas estava previsto que com uma única justificação: o Almirante ini-
Poder Naval britânico. Tentou, contudo, um a esquadra de Brest viesse ao seu encontro e migo não sabia o seu ofício. A mim parece-me
plano: concentrar momentaneamente o maior tal não tinha acontecido, de forma que decidiu que a situação merece uma atenção mais cui-
número de navios possível no Canal, evitan- regressar a Cádis na convicção de que a inva- dada. Com vento oeste, se a esquadra virou
do simultaneamente que os ingleses fizessem são tinha sido adiada. Na verdade sabemos em roda a sul do Cabo Trafalgar e à distância
o mesmo. Não era fácil, porque a presença dos hoje que Napoleão tinha abandonado a ideia, que se supõe do mesmo, ficaria numa situa-
navios de reconhecimento era constante à fren- resolvendo concentrar esforços para atacar a ção de vento muito escasso para demandar
te dos portos, e todos os movimentos seriam Áustria, mas não temos referência nenhuma Cádis. Seria um erro demasiado grosseiro,
detectados. Sobretudo, era muito difícil levar a que essa informação alguma vez tenha che- para quem, apesar de tudo tinha uma grande
navios do Mediterrâneo para o norte, porque gado a Villeneuve. Entrou em Cádis no final experiência de mar. A verdade é que com esta
a passagem em Gibraltar era visível e levanta- de Agosto de 1805 e, dessa vez, Nelson tinha manobra a formação aliada desfez-se um pou-
ria suspeitas. Concebeu, no entanto, uma ma- controlado bem o seu movimento, moven- co e favoreceu o ataque inglês nos moldes em
nobra que poderia ter tido algum êxito: uma do-lhe um bloqueio largo que não impedia a que o determinara Nelson. Cerca das 12h30,
imensa esquadra combinada, de navios france- sua saída, mas que lhe permitiria tomar rapi- poucos minutos depois de iniciado o combate,
ses e espanhóis sairia do Mediterrâneo, atrain- damente uma formação de batalha e dar-lhe os ingleses tinham uma evidente superiorida-
do os ingleses até às Antilhas; daí regressaria combate, caso isso sucedesse. Os espanhóis de de fogo no local em que tinham cortado a
rapidamente com os ventos gerais do oeste, aconselharam a que se ficasse no porto e aí se formatura inimiga, onde metade dos navios
unindo-se às esquadras de Brest e Rocheford invernasse até à próxima estação: o esforço de não conseguiram sequer entrar em combate
que avançariam para a Mancha. Nessa altura bloqueio era dos ingleses que tinham de ficar por ficaram a sotavento. A sorte estava dese-
concretizar-se-ia a invasão. no mar e suportar todos os incómodos dessa nhada, mas de bordo do “Redoutable”, um
Franceses e espanhóis, constituindo uma situação, enquanto eles recuperavam forças experimentado mosqueteiro disparou sobre
imensa armada de cerca de trinta navios em terra. No entanto, as pressões sobre Vil- o Almirante, deixando-o ferido de morte.
(juntava-se a esquadra de Toulon e Cádis), leneuve para que saísse eram muito grandes, Nelson ainda teve consciência da sua vitória,
comandada pelo Almirante Villeneuve, saia e é provável que a mais forte de todas fosse cuja consequência mais notável foi o domínio
em direcção a oeste iludindo completamen- a ameaça do próprio Imperador. Há mesmo absoluto do mar por parte da Grã-Bretanha,
te a vigilância de Nelson que os buscava de- uma altura em que o Almirante francês decide e a completa inviabilidade da invasão da sua
sesperadamente. Tanto quanto se pode saber, aceitar o conselho dos espanhóis, mas muda terra, por parte de Napoleão.
terá sido um oficial da marinha portuguesa a de opinião, dois dias depois. Z
sugerir-lhe que o destino eram as Índias Oci- Nelson previra o que iria acontecer e prepa- J. Semedo de Matos
dentais, e os ingleses correram até às Antilhas, rou o seu plano de batalha com todo o cuidado, CFR FZ
REVISTA DA ARMADA U NOVEMBRO 2005 21