Page 349 - Revista da Armada
P. 349
Dados os inúmeros indícios geograficamen- Em jeito de resumo diremos que o que expli- onde eu dormia em cima de um pedaço de ta-
te difusos, não existe actualmente um consenso ca a maior capacidade de bolinar por parte de pete velho, à luz das estrelas. Os sete homens
generalizado quanto à sua origem. Embora nos uma vela latina é tão-somente a forma como se da tripulação dormiam em cima da carga. […]
pareça a nós, até pelo confronto das diferentes encontra envergada e a maior relação entre os Não tinha luzes, nem cartas, nem barquilha [sic],
16
escolas, que o aparecimento deste tipo de vela dois lados da vela, gurutil e valuma . nem linha de barquilha, nem âncora, excepto
terá tido um carácter essencialmente empírico. Já o local da sua primazia é assunto que ali- um gancho e um pedaço de pedra fácil de ma-
Pela simples constatação de que fazendo baixar menta acesas discussões com argumentos de nobrar. […] O sol assava-nos de dia, e as noites
a extremidade mais a vante da verga da vela re- prova igualmente fortes de parte a parte. Parece eram frias, mas julgo que foi a água para beber
donda a um plano inferior – ficando a verga a não existir, no entanto, qualquer dúvida quanto que me deitou abaixo. […] O pequeno dhow
fazer cerca de 45º com o mastro –, e bracean- à precocidade da sua utilização pelos Poliné- – tinha 55 pés de comprimento – corria como
um pássaro e a vela latina impelia-o
na direcção proa-popa, seria possí- lindamente. […] Estava estupidamente
vel ao navio navegar mais chegado convencido de ser pessoa à prova de
12
ao vento . Admitindo como vero- todas as dificuldades do mar, simples-
símil o que afirmámos, logo trans- mente por ter sido caçador de baleias
corre que com a verga nessa nova no Antárctico e ter navegado algumas
posição a superfície vélica da vela vezes nas águas do cabo Horn. Mas
redonda seria exagerada. O que se aquele pequeno dhow de duas proas
do-a até esta ficar aproximadamente Foto Herbert Böhm, Hamburgo
nos afigura como o passo neces- desenganou-me» .
19
sário para dar à nova vela a forma Não obstante os progressos a que
triangular . Este novo feitio viria a nos referimos, e que foram sendo al-
13
contribuir definitivamente para uma cançados separadamente no norte da
melhoria da estabilidade e equilíbrio Europa e no Mediterrâneo, tanto ao
do navio. A maior estabilidade era Dhows numa regata que recentemente teve lugar no Kuwait. nível da construção naval como da
conferida pela diminuição em altu- navegação à vela, estes mantiveram-
ra da área vélica, fazendo por isso -se estanques. Até ao momento em
baixar o centro de gravidade. Por que estes dois mundos foram obri-
sua vez, o facto de a maior parte da gados a comunicar. O principal pre-
área da vela se desenvolver para ré Foto CTEN António Gonçalves texto foram muito provavelmente as
do mastro proporcionava também Cruzadas com destino à Terra Santa,
um melhor e menos exigente go- que de permeio constituíram uma im-
verno por parte do marinheiro do portante ajuda nalgumas das fases da
leme, na medida em que através de reconquista que se iniciara na penín-
uma pequena afinação na escota da sula Ibérica. Os habitantes das póvoas
vela se atingia o equilíbrio vélico de- marítimas, do litoral do território que
sejado. A este factor de si favorável, viria a ser Portugal, beneficiaram, de
somava-se, quando desejável, uma uma forma ainda hoje mal compre-
certa tendência para a orça, o que endida, desses contactos preciosos.
consequentemente favorecia a nave- A caravela Boa Esperança navegando à vela ao largo de Porto Rico. Destaque O que de alguma maneira poderá
para o botaló à popa onde faz retorno a pouco caçada escota da mezena.
gação numa bolina um pouco mais também ajudar a explicar a primazia
cerrada. Em nossa opinião, a descoberta desta sios. A questão em aberto é saber se o seu apa- marinheira dos Portugueses como protagonistas
acção de equilíbrio terá conduzido ao posterior recimento no Mediterrâneo se encontra associa- na Era dos Descobrimentos. De resto é com a
aparecimento de um mastro mais a ré denomi- do à sua difusão pelos Árabes, cujos navios a colaboração das Cruzadas que são feitas algu-
14
nado mezena , com vista a conferir, através de terão eventualmente utilizado em primeira-mão mas conquistas do território português: II Cru-
um pequeno ajuste da respectiva vela, o efeito no Índico, no golfo Pérsico e no Mar Vermelho. zada (1147-1149) é conquistada a cidade de
pretendido. Pelo que conseguimos apurar a ori- Ou se, como alguns vestígios aparentam indi- Lisboa (1147); III Cruzada (1189-1192) é feita a
gem do nome deste mastro/vela radica na pa- car, a vela latina conheceu um desenvolvimen- tomada de Silves por Sancho I (1189); VII Cru-
lavra árabe mizaan, que significa balança, ou to autónomo no Mediterrâneo, mais ou menos zada (1248-1254) dá-se a conquista definitiva
equilíbrio. Nem mais. na mesma época, tendo os Árabes, a posteriori, do Algarve (1249).
Atendendo ao facto de não ser fisicamente contribuído decisivamente para uma dissemina- Minimizada que foi a insegurança pela re-
possível caçar a bordo a escota da nova vela, ção em larga escala da sua utilização. dução do corso, seguiu-se um intenso período
visto a respectiva esteira exceder o comprimen- Ainda hoje faz parte do quotidiano de mui- de trocas comerciais que manteve em estreito
to do navio à popa, foi desenvolvido um expe- tos países, outrora intimamente ligados ao flo- contacto os marinheiros do Norte e do Sul da
17
diente como forma de ultrapassar o problema. rescente comércio árabe no Índico , um tipo Europa. Nesta conjuntura foram reciprocamente
Assim, surgirá na popa da caravela uma verga de navio denominado dhow . Muitos estudos assimilados os conhecimentos técnicos mútuos,
18
disparada horizontalmente para ré, à guisa de indicam até, levando em conta os achados ar- com especial realce para a utilização do leme
gurupés. Num moitão do seu lais a escota da queológicos e a abundante iconografia, que es- de cadaste e a inclusão de castelos, nomeada-
mezena faz retorno permitindo a sua manobra tes navios ainda hoje possuem exactamente as mente à popa , pelos navios mediterrânicos.
20
a partir do tombadilho, sem dificuldade maior. mesmas características de há mais de mil anos, Por sua vez os nórdicos passaram a ver a cons-
Nesta verga chamada botaló era amarrado por tanto ao nível do casco como do aparelho. Em trução dos seus navios assente numa sólida qui-
vezes o batel quando o navio se encontrava fun- nosso entender, o célebre escritor Alan Villiers lha com balizas travadas sendo abandonado o
deado – evitando que este devido ao vento ou à escreveu sobre o dhow aquilo que melhor o de- forro de costado trincado – topos sobrepostos
vaga se danificasse de encontro ao costado do fine: «Assim, pela primeira vez, parti para uma –, a favor do método em que o tabuado apenas
navio –, ou durante os pequenos trajectos em espécie de viagem experimental no mar Verme- se encontra junto topo a topo, devidamente
que seguia rebocado . Compete referir que a lho com um dhow de duas proas, muito fino e calafetado .
21
15
vela de mezena veio permitir que, quando fun- muito belo e que quase me matou. Como todos Estamos plenamente convencidos de que esta
deado, o navio manter-se-ia aproado ao vento, os verdadeiros dhows árabes, não tinha acomo- preciosa troca de conhecimentos se encontra na
22
minimizando assim a possibilidade de o navio dações de qualquer espécie. Havia à popa, junto génese da famosa caravela portuguesa , onde,
ir à garra por ocasião do virar da maré. da cana do leme, uma coberta muito pequena, aliás, não temos qualquer dificuldade em iden-
REVISTA DA ARMADA U NOVEMBRO 2005 23