Page 96 - Revista da Armada
P. 96

A MARINHA DE D. JOÃO III (21)



                           As Capitanias do Brasil
                           As Capitanias do Brasil


               a primeira metade do século XVI,  a aconselhar o rei a dar andamento urgente   Para além dos dois benefícios concedidos,
               distingue-se em Paris a figura de  a um projecto de povoamento a efectuar por  a medida tomada não teve outro efeito du-
         Num prelado humanista português,  privados, que permitisse a ocupação fortifi-  rante o ano de 1533, mas viria a ser fortemen-
         de nome Diogo Gouveia que, às preclaras  cada dos principais rios e barras, retirando a  te implementada no seguinte, com algumas
         funções universitárias na Sorbonne e noutros  todos os adversários os pontos de apoio cos-  alterações que se compreendem. Uma delas
         colégios de prestígio da cidade francesa, asso-  teiros, indispensáveis para que os seus navios  foi a adopção de novas fronteiras territoriais,
         ciou uma preciosa colaboração com a coroa de  conseguissem abastecer-se e obter o cobiçado  cingindo-se ao espaço entre o Pará e a Ter-
         Portugal, servindo várias vezes de interme-  pau brasil*.             ra de Santa Ana, excluindo o rio da Prata
         diário na resolução de diferendos                                             para evitar qualquer conflito com
         diplomáticos, nomeadamente os                                                 Carlos V. Desta forma foram for-
         que se relacionaram com o cor-                                                madas 15 capitanias, cujo mode-
         so e resgate de presas marítimas.                                             lo assentava no que tinha sido a
         D. Diogo acompanhava de perto                                                 administração das ilhas atlânticas,
         as intenções dos homens de ne-                                                embora com extraordinários pode-
         gócios da Bretanha e Normandia,                                               res para os respectivos capitães. A
         empenhados em alcançar as mer-                                                título de exemplo, dir-se-á que nem
         cadorias do Brasil, e teve um papel                                           o infante D. Henrique teve poderes
         determinante como conselheiro                                                 tão alargados nos seus territórios
         de D. João III sobre tudo o que a                                             insulares quantos os que recebe-
         esse assunto dizia respeito. Em 28                                            ram os capitães do Brasil. E assim
         de Fevereiro de 1532, escreveu de                                             procedeu a coroa, com o objectivo
         Ruão uma carta ao rei português                                               primeiro de aliciar iniciativas, for-
         onde está implícita uma crítica                                               necendo o que lhe parecia serem
         à administração portuguesa so-                                                os meios indispensáveis à gover-
         bre esse território. Dizia ele que                                            nança de terras bastante difíceis e
         D. João devia ter atendido aos pe-                                            afastadas do reino.
         didos de João de Melo da Câma-                                                  Todas as parcelas foram distri-
         ra e Cristóvão Jacques, efectuados                                            buídas, mas – deve dizer-se – o
         cerca de três anos antes, para co-                                            sucesso dos empreendimentos
         lonização da Terra de Santa Cruz                                              foi muito desigual, devido a múl-
         (Brasil), sob sua iniciativa e custo.                                         tiplos factores que não importa
         E recorda o prelado que um e ou-                                              aqui explicar em detalhe. Uma
         tro se propunham para ali deslocar                                            boa parte delas não conseguiu via-
         com cerca de 3000 portugueses, o                                              bilizar-se economicamente nem
         que faria com que “já agora hou-                                              estruturar-se de forma consisten-
         vera quatro ou cinco mil crianças                                             te. Nalguns casos proliferaram os
         nascidas e outros muitos da terra                                             conflitos com as populações indí-
         casados com os nossos, e é certo                                              genas, noutros faltou todo o tipo
         que após estes houveram de ir                                                 de mão de obra e, noutras ainda, a
         outros muitos”. Está a falar do que   Carta da costa sul americana, desde o Rio Amazonas ao Estreito de Magalhães, com   experiência da administração pri-
         poderia ter sido um projecto priva-  a delimitação das primeiras capitanias do Brasil.  vada com poderes tão alargados
         do de povoamento, anterior à via-  Biblioteca da Ajuda – Manuscrito atribuído a Luís Teixeira.  levou a excessos que motivaram
         gem de Martim Afonso de Sousa. Projecto esse   É de crer que, pelos finais da década de  deserções e queixas sucessivas, com conse-
         que o rei não atendeu, preferindo tomar para  vinte, alguma informação ou circunstância  quências óbvias de natureza política e eco-
         si a obra de limpar o Atlântico Sul de france-  levou o rei a optar pela tentativa de manter o  nómica. Na realidade não foi possível ocupar
         ses, procurando uma solução que mantivesse  território sob a sua própria alçada, contudo, a  toda a costa brasileira, deixando brechas fatais
         a administração do território sob a sua alçada  empresa não tivera os resultados que espera-  para a penetração francesa que conseguiu es-
         centralizadora.                    ra. Antes do mais, a campanha militar naval  tabelecer-se em lugares tão importantes como
           Na referida carta, Diogo Gouveia adverte  custara uma fortuna, que saíra do erário régio  a baía de Guanabara. Apesar de tudo, foi signi-
         ainda para o facto dos recentes aprisionamen-  sem um retorno compensador e sem oferecer  ficativo o crescimento da presença portugue-
         tos dos navios franceses terem despertado  uma solução de futuro. De forma que, ainda  sa na Terra de Santa Cruz, mas a solução não
         uma enorme agressividade dos armadores  em 1532, D. João já decidira que a coloniza-  era totalmente adequada aos tempos e às cir-
         normandos, havendo autorização de Fran-  ção era indispensável e devia ser entregue,  cunstâncias, revelando fragilidades enormes
         cisco I (rei de França) para que fosse organi-  sob condições a estabelecer, a empreendedo-  e obrigando a novas decisões de que tratare-
         zada uma expedição colonizadora do Brasil.  res privados. Nesse mesmo ano determinou  mos na próxima revista.
         Queria isso dizer que o êxito de Afonso de  que a costa brasileira devia ser dividida em              Z
         Sousa poderia tornar-se efémero, uma vez  parcelas de 50 léguas a entregar a capitães do-  J. Semedo de Matos
         que a costa brasileira continuava desprotegi-  natários, reservando, desde logo, 100 léguas       CFR FZ
         da, não havendo condições económicas que  para Martim Afonso de Sousa e 50 para seu   Nota
                                                                                 * O pau brasil era a designação de uma família de
         pudessem sustentar esquadra com dimensão  irmão Pêro Lopes de Sousa. E fê-lo enviando   árvores cujo núcleo central duro, era triturado, mistu-
         suficiente para a policiar em permanência. No  carta para o principal interessado, que a rece-  rado com água e fermentado, permitindo obter uma
         fundo, o distinto humanista português estava  beu em S. Vicente no princípio de 1533.  gama de corantes usados na indústria têxtil.

         22  MARÇO 2007 U REVISTA DA ARMADA
   91   92   93   94   95   96   97   98   99   100   101