Page 98 - Revista da Armada
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nhamos no Museu, onde não existia – como em Paris – um único as- Quase quatro séculos depois, uma firma sul-africana encontra os restos
trolábio náutico. Havia, porém dois belos astrolábios planisféricos, mas do navio e vende ao Museu de Marinha um astrolábio, bastante corroí-
esses eram mais ferramenta de cosmógrafos que de marinheiros. do, mas que constitui uma recordação daquele triste naufrágio. A nau
Até que, num certo dia, recebo um telefonema de alguém a dizer em que se encontrava o instrumento chamava-se Santiago.
que tinha um astrolábio em casa. Não acredi- E de Santiago o baptizámos.
tei, naturalmente. Isto é: só me convenci ao Atocha III Em Setembro de 1622, os galeões espanhóis
fim duns bons largos minutos. “Eu vou aí!” Nuestra Señora de Atocha e Santa Margarita re-
Mas a resposta foi: “Estou na Ericeira e tenho gressavam do Novo Mundo carregados com
de sair. Só amanhã”. uma fortuna imensa. O mau tempo atira-os
No dia seguinte, eram nove horas manhã, para os baixios da ponta sul da Florida. Pas-
estava em casa do meu interlocutor. As opor- sados que foram 350 anos, Melvin Fisher, fa-
tunidades não se podem perder. E vim a saber, moso explorador do fundo do mar, encontra
então, a história do tal astrolábio. os restos destes navios que vão a leilão pela
Sardinha Alves tinha tido um acidente e por firma Christies’s, de New York. É um espólio
isso ficara com dificuldades de locomoção. O milionário, onde há inúmeras barras de ouro
médico dissera-lhe para fazer exercício. Come- e belas peças neste precioso metal. O Atocha
çara a nadar. Passava horas dentro de água na tinha cinco astrolábios a bordo – um recorde
esperança de melhorar. O fundo do mar dei- absoluto – dos quais vão quatro a leilão.
xou de ter segredos para si. Ia achando objec- António Costa, um conceituado antiquá-
tos sem interesse, que trazia para casa. Cer- rio da rua do Alecrim, recebe o catálogo que
to dia, estava a ver televisão com um amigo anuncia o leilão e leva-o a António Lamas, pre-
quando lhes apareceu alguém no ecrã a mos- Atocha IV sidente do Instituto Português do Património
trar o funcionamento dum astrolábio. O amigo Cultural que, sabendo o meu interesse por tais
diz-lhe: “Tu tens ali uma coisa igual! Telefona instrumentos, me dá conhecimento do assun-
para aquele tipo!” E, assim, entrou o primeiro to. Os preços previstos são elevados. Como ar-
astrolábio náutico no nosso Museu. ranjar dinheiro?
Crismámo-lo de Ericeira. A Comissão Nacional para a Comemora-
Entretanto, no Brasil, mais precisamente na ção dos Descobrimentos Portugueses, a que
Baía de Todos os Santos, tinham sido encontra- eu pertencia tinha, como Presidente, o Co-
dos vestígios de navios afundados. O futuro mandante Serra Brandão que, generosamen-
almirante Max Justo Guedes, Director do Pa- te, disponibilizou quinze mil contos. A seguir,
trimónio Histórico e Cultural da Marinha, con- o Estado-Maior General das Forças Armadas
trata a firma SALVANAN (Salvamentos Marí- contribuiu com cinco mil contos e o Museu de
timos) –, especializada neste tipo de trabalhos Marinha com mais mil.
arqueológicos – para efectuar a pesquisa. São Eu nunca tinha participado num leilão pelo
encontrados pelo menos três astrolábios náu- telefone. Para o efeito, António Lamas pôs à
ticos. E digo pelo menos porque depois se veio disposição o seu gabinete no Palácio da Aju-
a saber que algumas das peças tinham sido Sacramento B da, gabinete esse que serviu de quartel-gene-
sonegadas, isto é, não haviam chegado até à ral. O palácio estava completamente deser-
Marinha Brasileira, como, por exemplo, um to, quando entrámos. Era noite, pois a hora
sino de prata com o nome dum dos navios e prevista para o leilão em New York corres-
que foi vendido na Holanda, em leilão. pondia às 23 horas de Lisboa. Para ajudar na
Robert Marx, que fora o responsável por operação, estavam presentes o representante
essa pesquisa criminosa, é proibido de voltar da Christie’s em Lisboa e o antiquário Antó-
a entrar no Brasil. Mas nem por isso perdeu nio Costa, que, infelizmente, já nos deixou. A
qualidades. Não há muito tempo, quis vender emoção era grande. Como se sabe, nos leilões
um astrolábio ao Museu da Marinha de Ma- por telefone, para não haver a intromissão de
drid que não nos foi difícil rotular como falso. brincalhões, é a leiloeira que telefona cada vez
Não se julgue, porém, que Robert Marx é um que se avizinha a altura da venda das peças
caso isolado. A pirataria entre os caçadores de que nos propomos adquirir. Enfim, momen-
tesouros continua. Recentemente, uma das tos de grande suspense.
mais emblemáticas firmas de leilões que há no Como não dispúnhamos de muito dinheiro
Mundo vendeu um astrolábio náutico e, como e pensando que os astrolábios eram objectos
se recusa a dar conta dos antecedentes desta mais do campo das ciências do que das artes
peça – afirmando que não consegue entrar em contacto com o anterior – com poucos interessados, portanto – deixámos passar o primeiro e
proprietário, desculpa em que ninguém acredita – tudo leva a crer que concentrámo-nos no segundo da lista, que, aliás, adquirimos sem di-
estamos perante uma fraude semelhante à que atrás mencionei. ficuldade – o Atocha III.
Voltando aos três astrolábios retirados das águas da Baía de Todos-os- Todavia, o exemplar seguinte tinha uma característica muito especial.
-Santos, esclareço que dois deles foram achados nos restos da nau por- Exibia a data de 1616, estava assinado por João Dias, um conceituado
tuguesa Sacramento. O almirante Max Guedes, generosamente, propôs fabricante português, e, fundamentalmente, exibia o punção da Casa
ao seu Ministro da Marinha que um deles fosse oferecido a Portugal. da Contratação, o que significava ter sido aceite pelo Cosmógrafo-mor
Na altura, ainda não tínhamos nenhum exemplar neste Museu, pois o de Espanha como instrumento bem dividido e apto para a navegação.
Ericeira, de que falámos anteriormente, só foi achado depois. A entrega Enfim, era um astrolábio que não se podia perder.
teve lugar numa cerimónia na magnífica biblioteca da Universidade Entusiasmados, fomos cobrindo os lances e acabámos por conseguir
de Coimbra. Um gesto inesquecível que veio enriquecer o Museu de o Atocha IV. Todavia, o dinheiro reunido não chegou. Tínhamos come-
Marinha com um novo astrolábio: o Sacramento B. tido a imprudência de fazer uma despesa superior às nossas posses.
Em Agosto de 1595, a nau portuguesa Santiago vai a caminho da Índia E as imprudências pagam-se. No entanto, se agora aqui estou a escre-
e, ao navegar no Canal de Moçambique, perde-se nos baixios da Judia, ver estas linhas, de cara levantada, devo-o ao Almirante Carvalheira,
naufrágio esse que está nas páginas da nossa História Trágico-Marítima. então Chefe do Gabinete do Chefe do Estado-Maior da Armada que,
24 MARÇO 2007 U REVISTA DA ARMADA