Page 97 - Revista da Armada
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Cocktail + Sorte = Astrolábio
            Cocktail + Sorte = Astrolábio



               á uns bons anos atrás, assisti a uma conferência proferida por  havia mesmo. Estava a falar com a esposa de François Bellec, oficial de
               um prémio Nobel japonês. Não lhe recordo o nome, mas lem-  Marinha. O casal tinha vivido em Agadir, onde ele trabalhava no ser-
         Hbro-me de ter afirmado que, sendo professor, abandonara  viço de informações militares respeitantes às bases de treino da Frente
         a docência por desentendimento com a Universidade em que tinha  de Libertação Nacional. Pois bem, no fatídico dia 29 de Fevereiro de
         uma cátedra. Mas um prémio Nobel não está sequer um minuto de-  1960, a terra em Agadir abanou tão violentamente que fez cerca de 15
         sempregado: logo a seguir, uma das maiores empresas de electrónica  mil mortos. O casal Bellec habitava no último andar dum edifício que
         do Mundo o convidou para Presidente,                                       ruiu, esmagando todos os andares infe-
         e nessa qualidade o ouvimos. Foi uma   Aveiro                              riores. Só escaparam quatro pessoas. O
         bela conferência. Ainda recordo uma                                        andar dos Bellec aguentou -se em parte,
         passagem. Disse ele que o sucesso é                                        mas bloqueou a saída dos ocupantes.
         composto por três vertentes: o saber, a                                    Só passado algum tempo – para eles,
         experiência e a sorte. E disse mais: dis-                                  certamente, uma eternidade – é que as
         se que a sorte tem tanta importância                                       equipes de socorro deram com aque-
         como o saber ou a expe riência, e refe-                                    les desesperados prisioneiros. E foi em
         riu o seu próprio caso como exemplo.                                       resultado desta tragédia que, naque-
         De facto, por uma casualidade fortuita                                     la tarde, em Paris, o trauma de Letícia
         e feliz – será isto a tal serendipidade?                                   Bellec ressurgiu.
         -- ele tinha passado, segundo ele, do                                        François Bellec estava ali por ter sido
         modesto lugar de professor para o de                                       nomeado para as funções de director
         gestor milionário.                                                         do Museu de Marinha. E o episódio
           Portanto, não estarei sozinho quando                                     que relatei serviu, certamente, para fa-
         destaco a importância da sorte no nosso                                    zer nascer, entre nós, uma sólida ami-
         quotidiano. É o que vou fazer. E, come-                                    zade. Passei a frequentar o Palácio de
         çando pelo princípio – que  é a ordem                                      Chaillot, onde de encontra o Museu
         natural de todas as coisas –, vou recor-                                   desde os anos ‘40.
         dar que, no fim da minha carreira acti-                                       Bellec é pintor de Marinha e estudio-
         va, o Almirante Souto Cruz, Chefe do                                       so da História da Navegação. Tem mui-
         Estado-Maior da Armada, por razões                                         tas obras publicadas. Interessa-se, natu-
         que não vêm para o caso, me conferiu                                       ralmente, por instrumentos e lamentava
         o lugar de Adido Naval em Paris. E,                                        o facto de não possuir nenhum astrolá-
         foi assim, que deparei comigo a viver                                      bio náutico nas suas colecções. Mas ha-
         na Cidade-Luz, coisa que, para mim,                                        via um exemplar em França. Pertencia a
         nunca tinha passado de utopia.                                             um oficial de Marinha, de nome Coin-
           Não sei se entre os meus leitores se encontram alguns ex-adidos da-  dreau, que o conseguira em resultado de dragagens no estuário do rio
         queles que actuaram junto das nossas embaixadas, espalhadas por esse  Bou-Regreg, quando exercia funções no porto de Rabat.
         mundo fora. Se os há, certamente não irão discordar se eu disser que   Imaginámos, em comum, as mais arrojadas estratégias para con-
         uma das actividades mais importantes destes modestos servidores é o  vencer o Comandante Coindreau a oferecer ou, pelo menos, deposi-
         cocktail-party. E não se julgue que estou a fazer humor. De facto, uma das  tar o astrolábio no Museu. Sem resultado. E para cúmulo dos azares:
         maiores dificuldades para um adido, é obter resposta a uma pergunta  o Coindreau filho ingressou também na Marinha e seguiu as teimosas
         vinda de Lisboa, tanto mais que, tratando-se de um Estado-Maior que  pisadas do pai.
         se preze, é sempre super-urgente. Quando o pretendemos fazer, a res-  Entretanto, a minha comissão em Paris terminou. Tudo que é bom se
         posta habitual da secretária do almirante é do género  “ o almirante está  acaba. O almirante Emanuel Ricou desafiou-me para ir para o Museu
         embarcado no porta-aviões Clemanceau”  e, se for um general, esse “não  de Marinha, de que era director. Aceitei. Lamentavelmente, um brutal
         se encontra presente porque está numa reunião em Bruxelas”.  desastre de automóvel impediu-me de o tornar a ver.
           Pois bem, a solução para isto é o cocktail-party. Com um gin tónico na   Foi no Museu que privei, pela primeira vez, com essa figura inesque-
         mão, avançamos para o general, ou para o almirante, com quem quere-  cível que foi o Almirante Teixeira da Mota, já que ambos pertencíamos
         mos falar e, depois de cinco ou dez minutos de banalidades, expomos  à Comissão Técnica Consultiva, auxiliar da direcção do Museu.
         o nosso problema e,                                                                       Um dia, numa
         se não obtivermos   Ericeira                         Santiago                           reunião, Teixeira da
         resposta imediata,                                                                      Mota vira-se para
         conseguimos quase                                                                       mim e diz-me “Por-
         sempre o encontro                                                                       que não escreve isso
         atempado que dese-                                                                      que acaba de dizer?”.
         jamos.                                                                                  “Escrever o quê?”,
           Foi precisamente                                                                      perguntei. “O que
         num cocktail, numa                                                                      acabou de dizer”, in-
         roda de pessoas des-                                                                    sistiu. E o resultado
         conhecidas, que uma                                                                     foi este: bem ou mal,
         senhora presente                                                                        nunca mais parei de
         me disparou: “Você                                                                      escrever.
         é português? Terra-                                                                       Entretanto, fui
         moto. Lisboa. 1755!”                                                                    dando uma arruma-
           Percebi que havia                                                                     ção aos instrumentos
         algo de estranho. E                                                                     de navegação que tí-
                                                                                      REVISTA DA ARMADA U MARÇO 2007  23
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