Page 161 - Revista da Armada
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A Declaração do Milénio, aprovada por Neste panorama que tem uma referên- tos em campanha, os que foram distin-
todos os Estados membros da ONU no cia no desastre da guerra mundial, um guidos pelas condecorações, finalmente
ano 2000, definiu propósitos e métodos ponto intermédio na dissolução da su- todos os que actuaram em Angola, na
cujo progresso de efectivação foi avaliado premacia europeia, e uma total perple- Guiné e em Moçambique. Já um dia es-
na Cimeira de Setembro de 2005. O Rela- xidade neste inicio do Milénio perante crevi que, em celebrações deste género,
tório do Secretário-Geral, intitula-se – Em a derrocada do sistema financeiro e a apenas se deviam ouvir os clarins, obri-
maior liberdade: desenvolvimento, segurança paralisação crescente da economia real, gados todos ao silêncio da veneração pe-
e direitos humanos para todos, e foi divulga- do novo paira sobre o caos a urgência los que não esqueceram que a Pátria os
do em 21 de Março do mesmo ano. do verbo organizador, o regresso aos va- contemplava. Essa infantaria de marinha
Se a avaliação não foi excessivamen- lores abalados pelo relativismo dissol- foi iluminada pela recordação da lança
te positiva, os resultados da Cimeira de vente, o apoio no eixo da roda da histó- que em 1415 “abriu as portas de Alcáço-
Setembro de 2005 também não seriam ria que as comunidades políticas fitam va de Ceuta”, inscreveu no seu ideário
excessivamente animadores no que toca na Bandeira. Não se trata de regressar o comportamento dos “heróis do mar”,
à reforma, fortalecimento de meios, e re- a um conceito de soberania agressiva e guardando na sua narrativa a memória
forço da credibilidade da ONU. Mas o expansionista, aos exércitos apoiantes de da determinação do Almirante Rebore-
diagnóstico do Secretário-Geral é impor- formulações ideológicas, trata-se de pre- do e Silva, quando decidiu “organizar a
tante, e o capítulo orientado pelo tema servar o civismo da tradição de Cicero, marinha militar no ultramar, onde pra-
que intitulou – Viver sem medo, teve uma agora desafiado a formular as respostas ticamente só existiam serviços de mari-
relevância de primeira exigência. exigidas por um globalismo anárquico. nha que se ocupavam do fomento marí-
Este viver sem medo é de uma abran- A necessidade do apoio das institui- timo”. A intervenção da marinha, e neste
gência que engloba as catástrofes na- ções que, ao longo dos tempos e das mu- caso dos seus fuzileiros, nos treze anos
turais, em face das quais não se revela danças, são os alicerces vindos do passa- de guerra da mais longa frente de bata-
qualquer excepcionalidade de poder das do sem o qual não é possível reinventar o lha do século, o esforço que se traduziu
grandes potências, que inclui as pande- futuro, acompanha a exigência crescente na construção de navios e lanchas, em
mias que ultrapassam as capacidades de restabelecer a confiança, na sociedade abastecer as unidades dispersas pelos
científicas e técnicas disponíveis, que civil nacional, na sociedade civil transna- vários e diferentes territórios, permite
enumera a criminalidade transnacional e cional, na relação delas com os poderes à marinha proclamar que não perdeu a
contra a humanidade, que se alarma com políticos de confiança restaurada. guerra, perdeu sim a retaguarda. Toda-
a existência de difusão das armas de des- Os apelos à ética, a insistência na ur- via, por fundamento que tenha atribuir
truição maciça, que sublinha a tradicio- gência de repor os valores, o crescente aos ventos da história o ponto final coloca-
nal impotência contra a miséria, e foi um apelo à transcendência, ainda que à mar- do no império euromundista, incluindo
conceito animado pela afirmação de que gem das religiões institucionalizadas, o espaço de soberania portuguesa, não
“decorridos cinco anos do novo milénio, tudo se congrega no sentido de alargar a há vento que apague o exemplo de servir
temos a possibilidade de deixar aos nos- convicção de que o relativismo crescente com coragem e cair com honra, nem rein-
sos filhos um legado mais auspicioso do abala todas as instituições, desacredita venção do futuro que possa imaginar-se
que qualquer outro jamais recebido por os órgãos de soberania, cria distância en- sem passado. Este passado da marinha e
uma geração anterior”. tre as gerações, torna frágil a esperança dos seus fuzileiros, inscreve-se no activo
O tempo acelerado que enquadra a das comunidades e das pessoas. da história portuguesa, é uma das expe-
evolução da conjuntura internacional, A contabilidade do passivo da ordem riências éticas que balizam a reformula-
não previu que depois, tão rapidamen- mundial que os ocidentais construíram, ção do futuro, a narrativa da sua acção
te o conceito da paz, então considerado, para depois contribuírem para a sua faz parte do património imaterial que dá
fosse desafiado pela tempestade que desagregação que progride, orienta no carácter à identidade nacional. Não se
abalou o cordão muçulmano que, de Gi- sentido de salvaguardar os alicerces de trata portanto e apenas da sua valia mi-
braltar à Indonésia, divide o Norte do referência das instituições que corres- litar, nem apenas da identidade ganha e
Sul do Mundo, nem que tal mudança pondem ao que permanece do passado mantida na acção e na resistência ao des-
fosse causada pela arma ligeira de uma com futuro. caso: trata-se de ser uma âncora da ética
caricatura do Profeta que não passará à A segurança, tão ambicionada pelos de responsabilidade sem a qual não ha-
história da arte, mas que estará lembra- povos, tão fragilizada pelo descontrolo verá reformulação da governação mun-
da na teoria de manipulação das massas globalista, tão atingida pela privatiza- dial, trata-se também de levantar a ban-
por forças políticas armadas. ção, tão posta em causa pela substituição deira da identidade na acção partilhada
A intervenção do Prémio Nobel da Paz de dever cívico, que moldava o serviço do multilateralismo europeu e ocidental,
Mohamed El Baradei, Director Geral da militar obrigatório, pela contratação que trata-se de impor a confiabilidade nas
Agência Internacional da Energia Ató- é uma das faces mais visíveis da priva- responsabilidades assumidas. Volto a
mica, foi para comunicar “a descoberta tização, aconselha a preservar os corpos lembrar que, recordando os caídos, ape-
de redes de compra ilícita de armas nu- de elite das Forças Armadas, referências nas se devia ouvir o toque dos clarins. E
cleares e a ausência de acordos na Con- estruturais da ética de responsabilidade, es- talvez esse ruidoso silêncio despertasse a
ferência sobre o Tratado de Não-Pro- pelhos do povo, que erguem a bandeira para memória dos responsáveis pelas respos-
liferação Nuclear (TNP) de 2005”. Os a qual convergem as intuições e as von- tas a dar à crise de governança mundial
esforços dos EUA, neste caso apoiado tades quando a emergência orienta para em que nos encontramos.
por 163 Estados, no sentido de chamar o regresso ao eixo da roda. Nesta data de Z
à observância dos Tratados não tiveram celebração do vosso 32.º aniversário, cer- Prof. Doutor Adriano Moreira
êxito, e a inquietação sobre a observância tamente a primeira das meditações deve Presidente do Instituto de Altos Estudos
da Convenção de Interdição das Armas ser dirigida para o passado histórico dos da Academia das Ciências de Lisboa
Biológicas (CIAB) e das Armas Quími- que mereceram usar a boina azul-ferre- Professor Emérito da Universidade Técnica de Lisboa
cas (CIAC), e a sua obediência univer- te. Sobretudo o sacrifício daqueles que, Alocução proferida na Associação de Fuzileiros
sal, foi evidente. durante a guerra de África, foram mor- em 27 de Março de 2009
REVISTA DA ARMADA U MAIO 2009 15