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A MARINHA DE D. JOÃO III (45)
Entre o Mediterrâneo e o Atlântico
Entre o Mediterrâneo e o Atlântico
conquista de Tunes por Carlos V, Quando forçou a Goleta e atacou a arma- rinas alcançaram níveis inimagináveis em
em 1535, teve um impacte reduzi- da do Barbarroxa, não o fez com os mes- 1530 ou 1535. Carlos V assumira-se como
A do sobre a capacidade naval turca mos olhos dos espanhóis ou portugueses, rei de Castela e Aragão, com todos os de-
no Mediterrâneo Ocidental, e deve acres- preocupados com o poder que esse homem veres que isso implicava, mas sentia-se,
centar-se que isso se deveu a uma menor tinha concentrado em Argel ameaçando as sobretudo, um sucessor de Carlos Magno
compreensão do Imperador das circunstân- Ilhas Baleares e a costa sul da Península. que fora derrotar o islamita na mesma ter-
cias dessa ameaça e, sobretudo, do que ela Em primeiro lugar fê-lo com o entusias- ra onde sucumbira o rei Luís IX – o modelo
significava para o seu próprio Império. Na mo de um soberano que, pela primeira do soberano cristão e o cruzado canoniza-
verdade, Carlos não tinha uma noção clara vez está a entrar num grande combate e do como S. Luís. No contexto vivido pela
da dinâmica transformadora por que esta- quer desfrutar dessa glória e do prestígio Europa daquele tempo, em que o seu prin-
vam a passar os seus domínios territoriais, que dela pode tirar. Nada o faria retirar cipal inimigo, Francisco I de França, se per-
com os reinos peninsulares a cresce- mitira fazer uma aliança com o turco
rem avassaladoramente, à custa das contra si, Carlos achava-se o guar-
importações ultramarinas, e com o dião da fé cristã e imaginava exercer
Mundo Mediterrânico a perder um o seu poder a partir de Roma, como
pouco da sua importância relativa, os velhos imperadores. Sonhava
no contexto global europeu. A par- com a forma clássica da universitas
ticipação portuguesa na expedição christiana, e é com esta ideia que sai
teve uma utilidade muito reduzi- de Tunes em direcção à Cidade Eter-
da para os interesses do país, se não na onde se imagina simbolicamente
considerarmos a importância que coroado de louros, como qualquer
pesava nas relações peninsulares e general romano dos primeiros sé-
no reforço da aliança com a Casa dos culos da nossa era.
Habsburgos, de que o Imperador era Sabemos hoje como foram impor-
o grande patriarca. Esta aproxima- tantes os domínios ultramarinos es-
ção já fora cimentada nos casamen- panhóis, com as suas remessas de
tos dos dois soberanos ibéricos que prata e oiro, mas é preciso relem-
ficaram cunhados por dupla via, brar que esses rendimentos foram
tratando-se intimamente como ir- em crescendo exponencial ao lon-
mãos, e respeitando-se à medida do go do século XVI, e que não eram
que isso poderia vir a representar no previsíveis quando Barbaroxa to-
futuro das suas descendências. Mas mou Tunes. Cresceram cinco vezes
as alianças matrimoniais a que am- durante o reinado de Carlos V e no
bos tinham acedido, nesta primeira final do século eram cerca de doze
metade do século XVI, não tinham o vezes superiores ao valor relativo
mesmo significado para o Imperador que tinham nos anos vinte (Pierre
e para o Rei de Portugal. Repare-se A Imperatriz Isabel de Portugal, irmã de D. João III e mulher de Carlos V. Chaunu). O Imperador não sabia
como esses casamentos vinham na Ticiano. Museu do Prado. como a Espanha ia ser tão impor-
continuidade de uma tradição que remon- da Goleta sem antes tomar Tunes e aí re- tante e como era aí que viria a encontrar a
tava ao tempo de D. João II, e que visava por o deposto Muley Hassan, mesmo que base do seu poder imperial. D. João III, na-
a união das coroas ibéricas: era algo que isso significasse (como aconteceu) dar a turalmente, olhava-o como o seu cunhado,
também fora muito importante para os possibilidade de fuga ao senhor de Argel, casado com a Imperatriz Isabel e irmão da
Reis Católicos, mas que Carlos compreen- permitindo que recuperasse a capacidade Rainha Dª Catarina. Não podia negar-lhe
dia com alguma distância, própria de quem de corso no Mediterrâneo Ocidental. E re- a ajuda que pedira, tanto mais que outras
não vivera na Península e tinha outros vín- pare-se como Argel é uma posição muito questões continuavam pendentes entre os
culos culturais e outros anseios próprios. mais ocidental que Tunes, com maior ca- dois monarcas (como a questão das Molu-
Repare-se que eram os domínios da Euro- pacidade de ameaçar os portos espanhóis. cas). Mas Tunes só teria interesse para os
pa Central que lhe davam acesso ao título Em vez de explorar o sucesso do primeiro portugueses se varresse a influência tur-
de imperador, e não os reinos peninsulares, embate, com possibilidades de atacar Bar- ca do Norte de África. E isso era algo que
herdados dos seus avós. barroxa no seu covil, numa altura em que passava por Argel e que avançava para
Quero com isto dizer que nos anos trinta se encontrava mais fragilizado, permitiu ocidente até às praças portuguesas, po-
– quando partiu para a expedição de Tu- que fugisse e se reorganizasse. E o corsário dendo vir a ameaçar a Península Ibérica,
nes – Carlos era muito mais flamengo ou fê-lo de tal forma que, quando os navios como veio a acontecer mais tarde. Feliz-
borgonhês do que espanhol, e os seus an- portugueses passaram por Maiorca, já ele mente que o poder naval emergente não
seios estavam mais virados para os Países ali tinha feito nova incursão atacando vá- conseguiu as condições necessárias para
Baixos e para os domínios italianos do que rios navios que estavam no porto. se aventurar no Atlântico antes do século
para a Península. Apesar de não descurar Deve compreender-se esta atitude do seguinte, mas as suas bases mais importan-
as riquezas do Novo Mundo ou a alian- Imperador num contexto evolutivo em tes foram as que Carlos V não conseguiu
ça dos seus vizinhos portugueses, que ti- que o Mediterrâneo Ocidental e o Mundo ocupar nesta fase inicial.
nham alcançado a Índia e que traziam a Atlântico ainda não tinham a importân- Z
pimenta para Lisboa, o seu pensamento cia que viriam a assumir algumas décadas J. Semedo de Matos
estava em Itália. mais tarde, quando as remessas ultrama- CFR FZ
16 MAIO 2009 U REVISTA DA ARMADA