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A MARINHA DE D. SEBASTIÃO (7)
D. Francisco Coutinho: um veterano na Índia
Uma das últimas missões levadas a como puderam nos diferentes portos. Não há incompreensão) das múltiplas circunstâncias
cabo por D. Constantino de Bragança, notícia de grandes perdas, mas a armada não envolventes ao governo da Índia teve mo-
enquanto vice-rei da Índia, foi a pre- conseguiu cumprir a sua missão, sobretudo mentos menos felizes, mas fi-lo apenas pelo
carácter explícito do exemplo, e não porque o
paração de uma grossa armada, que saiu de porque não foi preparada em Janeiro ou Feve- mandato de D. Constantino tenha sido fértil
em incidentes deste tipo. O vice-rei dirigiu os
Goa em Abril de 1561, em direcção ao Golfo reiro como deveria ser. Sabemos que o atraso destinos do Oriente português com inteligên-
cia e, sobretudo, com a magnitude inerente
Pérsico, com a missão de reforçar a posição se deveu à presença do vice-rei na operação de à sua elevada dignidade social, com conse-
quências que importa salientar. Neste caso,
portuguesa em Ormuz e recolocar na capita- Jaffna, mas esta inoperância era endémica. Às
por exemplo, poderíamos supor que,
nia D. João de Ataíde, ao mesmo tempo que vezes devida às desconfianças generalizadas se não tivesse esse estatuto, alguém lhe
teria dito de forma clara que não devia
deveria libertar Bassorá da tutela turca e vol- e à centralização política própria do absolu- fazê-lo, e ele teria hesitado em enviar a
esquadra. Aliás, a quantidade de opera-
tar a colocá-la sob a alçada dos portugueses. tismo mas, noutros casos, apenas por incúria ções e gastos que foram feitos naquele
ano de 1560 e 61 só foram possíveis por-
Para perceber a importância estratégica que o vice-rei era um alto representante
da família Bragança. Mas é de salientar
de Bassorá basta ver como ainda hoje ela também como o ascendente que tinha
sobre todos os seus súbditos proporcio-
tem um papel determinante no acesso do nou uma forma de comando como não
se vira até ali, e isso trouxe grandes van-
Iraque ao mar, constituindo um impor- tagens ao poder português no Oriente.A
maneira como lidou com capitães e ou-
tante porto que, durante a última guerra tros subordinados que, apesar de tudo,
também eram nobres, foi marcado pelo
do Golfo, ficou sob a alçada das tropas elevado estatuto de nobreza de que esta-
va empossado, e não pode comparar-se
britânicas. Hoje como noutros tempos, o com o que era habitual nas relações de
poder na Índia Portuguesa. Pela primei-
domínio militar de Bassorá significava o ra vez se sentiu que o vice-rei era intocá-
vel, e que nada adiantava espalhar calú-
controlo da saída e entrada do comércio nias e intrigas sobre a sua pessoa ou fazer
chegar a Lisboa as habituais alcovitices
do Golfo Pérsico, com um elevadíssimo conspirativas. Nesse aspecto encetou-se
uma nova forma de exercício do cargo
rendimento de alfândega e uma eleva- que se repetiu, nalguns casos com gran-
des vantagens, e noutros com menos.
da quantia para o rei de Portugal. O so-
Mas nesse ano de 1561 terminaria o
berano local encarava essa dependência seu mandato, como estava destinado.
No mês de Março partia de Lisboa uma arma-
como o preço a pagar para evitar a tu- da de quatro navios que levava embarcado o
3º Conde do Redondo, D. Francisco Coutinho,
tela turca, muito mais penosa do que a indigitado para o cargo de vice-rei da Índia. O
Conde era um veterano das guerras no Nor-
portuguesa. Por isso recorreu ao auxílio te de África, onde estivera quando seu pai foi
capitão deArzila, e quando ele próprio tomou
do vice-rei da Índia, enviando-lhe uma conta da defesa dessa cidade até que D. João III
a mandou abandonar em 1549. Uma figura de
embaixada, que foi atendida em Goa, e alto gabarito, mais experiente que D. Constan-
tino enquanto chefe militar e homem de armas
motivou a organização de uma podero- e, embora de menor escalão na nobreza portu-
guesa, não deixava de ser um fidalgo da mais
sa esquadra, com nove navios grossos, alta estirpe, que fora conselheiro de D. João III
e estivera sempre no centro das decisões polí-
“entre galeões e caravelas”, quatro gale- ticas nacionais. Veremos adiante como encarou
o governo da Índia e o que foi a sua experiên-
otas e sete fustas, transportando cerca de cia no Oriente.
1400 soldados. Z
É sabido como a capacidade naval tur- J. Semedo de Matos
ca estava francamente diminuída, mas o CFR FZ
acesso por terra às regiões do Golfo per-
mitia-lhe controlar alguns dos pequenos
potentados locais, como acontecia com
a região do Bahrein, de onde lançavam A Armada de D. Francisco Coutinho (1561).
Livro das Armadas.
algumas operações sobre pontos-chave,
como era Bassorá. A armada portugue-
sa garantia a soberania do mar e o domínio e falta de atenção sobre as condicionantes da
da entrada do Shatt al-Arab, permitindo que zona. Fossem elas físicas e regulares, como as
o comércio de Bassorá – que no fundo era uma chuvas e as monções, ou sociais e antropológi-
grandepartedocomérciodoGolfoPérsicoque cas, relacionadas com a forma de viver e com
se destinava ao norte e ao Mediterrâneo – es- os valores próprios das sociedades orientais.
capasse ao controlo turco. Evidentemente que a ausência do vice-rei era
Infelizmente a decisão de D. Constantino impeditiva de uma iniciativa que envolvia
não pode ser tomada com o tempo devido, grandesmeios,masadecisãodealevaracabo,
porque as operações do sul lhe atrasaram a com o mês de Abril já avançado, revela uma
chegada a Goa, de forma que a armada ape- leitura imprudente das circunstâncias, sacrifi-
nas conseguiu sair a 12 de Abril. Nessa época cando meios de forma incerta. Felizmente não
do ano, o tempo no Golfo Arábico apresenta houve desastres de monta. Mas, pouco depois
já alguns sinais de instabilidade, embora ain- da saída da esquadra, soube-se que era neces-
da não esteja declarada a monção de sudoeste, sário acudir de novo a Damão e escassearam
mas quis o destino que os navios se viessem os instrumentos necessários para o fazer. E
a defrontar com um temporal do sul, quando essa falta de navios e dinheiro devia-se a um
já estavam a mais de uma centena de léguas conjuntodegastoseempenhamentos,nalguns
da costa. Como sempre acontece, nestas cir- casos, de pouca ou nenhuma utilidade, como
cunstâncias, deixaram-se correr com o tempo fora o caso dessa armada.
na popa e pano reduzido, indo parar à costa Este acontecimento sugeriu-me a pequena
do nordeste, até Baçaim e Chaul, abrigando-se nota sobre a forma como a compreensão (e
12 ABRIL 2010 U REVISTA DA ARMADA