Page 14 - Revista da Armada
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cer, o mar atingiu valores muito acima das a tarde, montaram a máquina de costura in- Seguíamos já ao longo da costa Argelina,
previsões meteorológicas tendo-se registado dustrial no poço e recuperaram e reforçaram muito cozidos, devido às fortes correntes de
máximos de 65 nós de vento e de 12 metros todo o velame que lhes foi possível. Uma luta oeste quando, a meio da tarde de dia 17, o
de ondulação. O navio alternava entre um nó contra o tempo que em muito contribui para vento cresceu em muito pouco tempo de uns
avante e um nó a ré, uma verdadeira inquie- o cumprimento desta ultima tirada. Mais do 25 nós na amura de bombordo para 50 na
tação para uma guarnição que ansiava chegar que apoiar na velocidade as velas eram fun- proa. Era a passagem de uma frente muito
a casa. damentais para actuar como estabilizadores activa que trouxe também aguaceiros fortes.
No período mais complicado desta borras- do navio. A ondulação passou rapidamente de cerca de
ca caiu no DSC do VHF o pedido de auxílio Após esta primeira tempestade navegá- um metro para cinco. A nossa velocidade, que
imediato de um navio que se encontrava a mos à máxima velocidade para criar uma andava pelos 9 nós, caiu para um. Fomos len-
40 milhas, mas a barlavento, o que tornava almofada de tempo para o atraso provocado tamente recuperando nas horas seguintes, na-
impossível a nossa aproximação. Era o porta- por uma outra que viríamos a enfrentar logo vegando a uma média de 3 nós durante 12 ho-
-contentores italiano Jolly Amaranto, que ti- após a Sicília. Esta foi mais fraca que o espe- ras e depois a cerca de 6 nós. Perdemos muito
nha tido um incêndio na casa das máquinas rado mas enfrentámos correntes contrárias tempo e o ânimo voltou a baixar até porque a
e estava à deriva, sem propulsão e à mercê de três nós que nos obrigaram a aproximar forte corrente da entrada do Mar de Alboran
da terrível ondulação que nós também sentí- da costa da Tunísia para ver reduzido o seu nos tirava 3 nós à velocidade de superfície.
amos. O mau tempo foi paulatinamente can- efeito. Mais uma vez optámos pelo caminho mais
sando o pessoal, que até para repousar tinha
dificuldade, devido aos saltos e ao balanço. longo e fomos contornar a costa de onde
Pela primeira vez em 11 meses a cozinha nos tínhamos afastado devido ao vento forte
não conseguiu confeccionar as refeições da que nos obrigou a arribar. E ao final do dia
guarnição. As equipas do leme, agora cons- 19 já estávamos acima da média necessária,
tituídas por cinco homens, governavam a fazer 10 e 11 nós com uma corrente míni-
com todo o leme a um e outro bordo – in- ma que só voltou a manifestar-se quando
cansáveis num esforço sobre-humano para tivemos que nos fazer à boca do Estreito de
manter o mar na amura, debaixo de chuva, Gibraltar.
com um vento que dói e encarando um mar
angustiante. Não é nada fácil a vida deste Passámos a linha imaginária entre Ceu-
pessoal com estas condições. Revezam-se de ta e a Ponta Europa, em Gibraltar, cerca das
2 em 2 horas, chefiados pelo oficial de quar- 22:00 de dia 21. Ao aproximar de Tarifa, caiu
to que ali permanece 4 sofridas horas, sem o sobre nós um aguaceiro com uma tremenda
peso do leme nas mãos, mas com a grande trovoada que veio acompanhado por ventos
responsabilidade de conduzir o navio de que fecharam e chegaram aos 67 nós (124
acordo com as ordens do comandante, não km/h). O navio adornou e foi mais lento a
permitindo que se atrevesse ao mar ou ao arribar do que o vento a fechar. A bujarrona
vento, o que se torna mais complexo duran- de dentro bateu e desfez-se em farrapos. Sa-
te a noite ou quando mar e vento não são ímos do Esquema de Separação de Tráfego
coincidentes na direcção. Por vezes passava para manter as restantes velas cheias e carre-
uma onda por cima e o poço, que fazia jus gámos o estai do velacho e o estai da gávea
ao seu outro significado, enchia-se de água. ficando o pessoal todo encharcado!
Na manhã do dia doze o tempo já apre-
sentava melhorias mas tivemos um contra- De dia para dia vinham aumentando os
tempo. Uma fuga de combustível no motor, contactos para confirmação da nossa hora
que obrigou à sua paragem por meia hora de chegada mas com tantas adversidades
para solução do problema. Para tal foi neces- era muito difícil dar uma resposta de con-
sário correr com o tempo com as gáveas bai- fiança. Nesta altura já tínhamos desistido da
xas para não perder no governo. Entretanto chegada a 23 de manhã e estávamos a apos-
as coisas já estavam mais calmas no Jolly tar na tarde, o que implicava uma média de
Amaranto e nós ficámos mais descansados. 7 nós. A bordo crescia uma ansiedade, justi-
O amanhecer de dia treze trouxe-nos ficada pela incerteza do dia da chegada e pe-
uma desagradável surpresa. O navio estava las saudades de um Portugal cada vez mais
coberto de um tom avermelhado. O vento perto. A dureza desta última etapa veio con-
forte que soprou da Líbia trazia muita areia firmar a fibra da guarnição que contribuiu
em suspensão. Uma areia vermelha finís- com o melhor de si, num esforço incessante
sima que coloriu cabos, velas, anteparas e para o sucesso desta missão.
tudo o que estava exposto. Tivemos muito
trabalho a limpar o navio mas contámos À uma da manhã de dia 22, já a navegar
com a ajuda preciosa de fortes aguaceiros. no Atlântico e com ventos de “apenas” 30
A navegação continuou aos soluços, ora nós, voltámos a caçar as duas velas de estai
suportando vento forte e ondulação alterosa para estabilizar o navio que já sentia a ondu-
que nos atrasavam, ora aproveitando, cada lação a crescer. E cresceu, cresceu, até que
brisa, cada abrigo e usando todas as velas começámos a levar autenticas chapadas de
que podíamos para recuperar das perdas. mar e a nossa velocidade caiu para os 5 nós.
Nesta fase o trabalho dos homens do mestre E assim fomos, com saltos, inclinações, ace-
foi fulcral, aproveitando uma aberta durante Mau tempo no Mediterrâneo lerações e desacelerações, tudo muito brusco
e por vezes regado por fortes aguaceiros, até
deixar por estibordo o Cabo Trafalgar e os
bancos Trafalgar e del Hoyo. Com este mar
os baixos ficam mais perigosos devido ao
14 FEVEREIRO 2011 • REVISTA DA ARMADA