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A MARINHA DE D. SEBASTIÃO (27)
O princípio do vice-reinado do conde de Atouguia
Pouco antes de sair de Lisboa para a Ín- do Indostão. Segundo nos conta António Pinto damental, porque fazia parte da base da ali-
dia, D. LuísdeAtaíde foidespedir-se do Pereira – que escreveu uma história do seu go- mentação local, de forma que o controlo da sua
rei aAlmeirim. Nessa altura já conhecia verno – o vice-rei passava grande parte do seu produção e distribuição assumia uma especial
todas as instruções régias para o seu governo, temponaribeira,despachandoassuntosdoEs- importância para o exercício do poder. Neste
mas D. Sebastião quis reforçar as ordens que tadonosarmazénsenacasadafundição,onde caso,porinfluênciadosmalabares,aregiãodei-
emanara e pediu-lhe que aguardasse um ins- mandavavirosfuncionáriosadministrativose xoudeoforneceraosportuguesesecomeçoua
tante, enquanto ele se recolheu à sua câmara assinava a documentação.Ali ficava, jantando mostrar uma hostilidade crescente que D. An-
onde escreveu um pequeno bilhete dizendo o em casa do vedor ou do guarda-mor, incenti- tão experimentara quando regressava da con-
seguinte:“FazeimuitaChristandade;fazeijus- vando os trabalhadores e pagando turnos ex- quista de Mangalor (Marinha de D. Sebastião
tiça, conquistay quanto puderes; tirai a cobiça traordináriosparaapressarosfabricos.Quando (13)). O assunto ficara pendente, porque o in-
dos homens; favorecei os que pelejarem e ten- chegou, estava pronta uma armada, destinada cidente teve lugar no final da estação, mas não
de cuidado da minha fazenda; ficou esquecido. O vice-rei foi
para tudo isto vos dou meu rendido por D. Luís de Ataíde,
poder: se o fizeres assim mui- em outubro, sem poder voltar
to bem, far-vos-hei mercê e, se a Onor, mas passou-o ao seu
o fizeres mal, mandar-vos-hei sucessor que, agora, iria acer-
castigar; e, se alguns regimen- tar todas as contas.
tos vos forem em contrário Já sob a tutela do novo vice-
destas coisas, suponde que me -rei da Índia, a 12 de novem-
enganaram, e por isso não haja bro de 1568, saiu de Goa uma
nada que vos estorve disto”. imensa armada, com cerca
Esta recomendação não deixa de 130 navios, transportando
de ser interessante pelo que cerca de 2500 portugueses e
revela do espírito do sobera- mais uns milhares de cristãos
no. Eram instruções que já ti- de Goa e aventureiros diver-
nha transmitido a D. Luís, que sos que queriam colaborar na
constariam certamente dos empresa. D. Francisco de Mas-
regimentos já emitidos, e que, carenhas seguiu adiante, para
de resto, estavam implícitas tomar a barra de su rpresa,
em todas as nomeações. Mas seguindo-se o resto da esqua-
não deixou de as repetir mais dra, com o próprio D. Luís de
uma vez, registando-as num Ataíde, que foi um dos primei-
bilhete pessoal que quis dar ros a desembarcar na praia a
ao vice-rei. E com o pormenor sul da fortaleza. A cidade ex-
interessante de terminar o tex- terior foi saqueada e pilhada,
to explicitando que, se alguma nos primeiros dias, e o cerco
coisa ele receber que contrarie completou-se com uma força
as suas ideias básicas, deve a norte e com a colocação da
supor que o rei foi enganado artilharia pelo lado de terra,
e proceder segundo os princí- A barra de Onor, com a sua fortaleza, conquistada por D. Luís de Ataíde em 1568. de onde eram mais eficazes
pios que ali reforçava. Pressu- Livro de plantaforma das fortalezas da Índia (Livro de S. Julião), Séc. XVII. os seus efeitos. Depois de um
põe esta recomendação a consciência de que a ao norte, que saiu no princípio de novembro, e intenso bombardeamento, os inimigos propu-
distância de Lisboa à Índia, ou a distorção das foi preparada uma outra para o Malabar, que seram-se negociar a rendição, que o vice-rei
informaçõestransmitidas,podemgerarordens zarpou no princípio de dezembro, sob o co- aceitounacondiçãodequesaíssemsemarmas
que não se ajustam à realidade concreta, cujo mando de Martim Afonso de Miranda. E esta e levando apenas os bens que cada um conse-
cumprimentonãoserveosinteressesrégios.Ao última fez três campanhas durante aquela es- guisse transportar.Aretirada teve lugar no dia
soberanooVice-reideveobediênciaabsoluta,e tação, intervaladas com reparações na ribeira, 24denovembroe,nodiaseguinte–diadeSan-
essaobediênciaobrigaàcompreensãodosseus onde se trabalhava de dia e de noite. ta Catarina – teve lugar a primeira missa, num
interessesparaquelhesejapermitidonãocum- Todavia, a acção mais importante, que altar preparado para o efeito. Ali ficou como
prir uma ordem concreta. É um conceito difícil D. Luís tinha previsto para esse ano, era o ata- capitão Jorge de Moura, com cerca de 200 por-
de compreender nos dias de hoje – sobretudo que à fortaleza de Onor e a sua ocupação pe- tugueseseduascompanhiasdecristãosdater-
por nós, militares – mas que esteve presente los portugueses. O conflito com aquela cida- ra, enquanto D. Luís seguia para Braçalor, com
nos reinos ibéricos, com interesses ultramari- de crescera antes do governo de D. Antão de o intuito de consolidar o domínio português
nos. “Obedeça-se mesmo que não se cumpra” Noronha e tinha a ver com o valor estratégico na costa de Canará. Para além da riqueza da
era um princípio decorrente da distância e do da região de Canará, no contexto da costa oci- região e da produção estratégica do arroz, as
atraso das comunicações, transportando res- dental da Península Indostânica. Tratava-se de barras de Onor e Braçalor ofereciam abrigo
ponsabilidades acrescidas para os delegados uma região rica em “pimenta, gengibre, ferro, aos navios que circulavam entre o Malabar e o
do poder régio no Ultramar. cairo, madeira, salitre e outras coisas” – como norte, sendo fundamental o seu domínio para
Quando D. Luís de Ataíde chegou à Índia, diz Pinto Pereira – mas tinha ainda arroz, de quem pretendia exercer a soberania sobre as
em outubro de 1568, tomou de imediato vá- que se obrigara a fornecer aos portugueses rotas marítimas do Indostão.
rias medidas de natureza militar, tendentes a uma quantidade anual significativa. O arroz J. Semedo de Matos
reforçar a autoridade portuguesa nos mares era uma mercadoria de valor estratégico fun-
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12 FEVEREIRO 2012 • REVISTA DA ARMADA