Page 272 - Revista da Armada
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O Cruzador “D. Carlos I” e “Almirante Reis”
          O Cruzador “D. Carlos I” e “Almirante Reis”



                         - A propósito do seu Centenário
                         - A propósito do seu Centenário










             m Julho de 1899 chegou a Lisboa o                                 resistência das populações a uma ocupação
             cruzador “D. Carlos I”, o maior navio                             efectiva e o reduzido interesse económico
         Ecombatente que pertenceu à Marinha                                   das colónias africanas, estiveram na origem
         portuguesa. Nasceu e viveu num período                              Foto do Museu de Marinha.  de uma presença até então quase exclusiva-
         da história nacional particularmente con-                             mente reduzida a feitorias costeiras.
         turbado. Construído à sombra da cobiça                                  Principalmente após a Revolução Liberal
         das grandes potências pelas colónias                                  (1820), numerosas e importantes expedições,
         africanas portuguesas e mesmo pelas ilhas                             chefiadas por oficiais do Exército e da Mari-
         atlânticas, constituíu-se num símbolo de                              nha, comerciantes e cientistas, partiram do
         esperança de renascimento de glórias                                  litoral onde Portugal até então tinha confina-
         navais passadas. Recebeu o nome do rei,                               do a sua soberania, reconhecendo vastas
         foi rebaptizado como Almirante Reis, par-                             regiões interiores de Angola e Moçambique.
         ticipou em manobras navais e em acções                                  A fundação da Sociedade de Geografia de
         diplomáticas de representação nacional,                               Lisboa (1875) criou melhores condições para
         passeou reis e presidentes, foi palco de re-                          o desenvolvimento daquelas explorações,
         voluções. Assistiu até a um nascimento a                              nas quais se distinguem marinheiros como os
         bordo. Não teve vida longa, como aliás                                comandantes Hermenegildo Capelo e
         parecia acontecer com tudo o resto numa                               Roberto Ivens e o tenente António Maria
         época de vertiginosa sucessão de aconteci-                            Cardoso. As razões destes empreendimentos
         mentos.                                                               são geográficas e económicas, mas têm fun-
           A história e algumas das histórias do cru-                          damentalmente a ver com a afirmação de
         zador “D. Carlos I” – talvez o único navio                            uma soberania que Portugal considerava his-
         pintado pelo seu patrono (ver capa) - esten-  O rei D. Carlos I, um apaixonado pelo mar.  toricamente consagrada.
         dem-se por três números da Revista da Ar-  Fotografia a bordo de um dos iates Amélia.  A África, no entanto, era uma fonte de
         mada. Neste, descreve-se o cenário e rela-                            despesas para o erário público, dificilmente
         ta-se a construção do navio.       dência dos ministérios da última década do  suportável para um país sem recursos e sem
                                            século, com os republicanos na sombra.   crédito. Nos meios políticos, a venda das
         O MUNDO EM FINAIS DO SÉCULO XIX      A população portuguesa rondava então os  colónias chegou a ser discutida, como via de
                                            cinco milhões e meio de habitantes, marca-  resolução dos problemas económicos do país.
           O cenário mundial do séc. XIX ficou mar-  da, tal como muitos outros países da Europa  Todas as fronteiras dos territórios coloniais
         cado pela contestação da hegemonia inglesa,  por uma forte corrente migratória para o con-  se faziam com domínios de outros países
         consequência das guerras napoleónicas, pelo  tinente americano, em particular o Brasil.  europeus. Era pois natural que as tentativas
         emergente império alemão e pelo despontar  Quase 60% da população activa trabalhava  portuguesas de afirmação de soberania
         dos EUA e do Japão como potências  na agricultura, repartindo-se os restantes em  viessem a colidir com os interesses dos seus
         económicas, logo militares. Como assinala  partes iguais pela indústria e pelos serviços.  vizinhos, que não esperavam que tão fraca
         António José Telo (1)… na passagem do sé-  Apesar de as novidades como o automóvel  potência na Europa ousasse contestá-los no
         culo, o sistema criado no congresso de Viena  ou o cinema não se terem feito esperar, o  ultramar. Em 1890 surge a crise que condi-
         (1815) foi substituído por outro, que pode-  país era pobre, quando comparado com os  ciona os acontecimentos históricos em
         mos chamar dos centros múltiplos. … Emer-  restantes países da Europa. A inexistência de  Portugal nos finais do século. A sua origem
         gem gradualmente três potências de primeira  matérias-primas e a localização periférica  está na reivindicação de uma “África
         ordem (Inglaterra, Alemanha, EUA) e cinco  foram factores decisivos no reduzido impacte  Meridional Portuguesa” constituída por
         de segunda (França, Rússia, Áustria - Hun-  das tecnologias baseadas nas máquinas a  Angola, Moçambique e territórios situados
         gria, Itália, Japão) ….            vapor em Portugal .                entre as duas colónias (“Mapa Cor de Rosa”,
           A África e grande parte da Ásia estavam  A estabilidade política surgida com a  1887), que se choca com os interesses ingle-
         sob tutela da Europa. O império britânico  Regeneração (1851) e o relativo enfraqueci-  ses de uma África que então queriam tomar
         tinha soberania sobre 350 milhões de pes-  mento do poder quase absoluto da Inglaterra,  como sua propriedade “do Cabo ao Cairo”.
         soas, então cerca de um quarto da popu-  fez crer que era possível o regresso a uma  Em Janeiro de 1890 ocorreu um incidente
         lação mundial.                     condição de grande potência, agora a partir  militar entre forças portuguesas e indígenas
           Em Portugal vigorava uma monarquia cons-  do aprofundamento do controlo dos ter-  que a Inglaterra reclamava estarem sob sua
         titucional: o rei nomeava o governo mas, de  ritórios africanos.      protecção. O governo de Londres exigiu a
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         acordo com a Carta Constitucional de 1826,  Os seus mais de 2 000 000 km de ter-  retirada da tropa portuguesa. Lisboa cedeu.
         os impostos e as leis eram aprovados pelo  ritório tornavam grande, em população, área  O episódio do Ultimato originou uma vaga
         parlamento. O regime era bi-partidário: os  e potencial riqueza em matérias-primas, um  de nacionalismo, a monarquia e o rei são
         “Progressistas” à esquerda, os “Regenera-  país que nada contava na Europa quando  acusados de negligência em relação aos ter-
         dores” à direita, que se sucederam na presi-  avaliado por aqueles factores. O clima, a  ritórios ultramarinos e mesmo aos interesses ✎
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