Page 344 - Revista da Armada
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A Armada e a Formação
A Armada e a Formação
do Portugal Contemporâneo
do Portugal Contemporâneo
O grande problema da História Naval relação vaga entre o objecto e a medida usada, mas o resultado é
necessariamente deturpado e errado, pois uma coisa não está adap-
Contemporânea em termos nacionais
tada à outra.
é a falta de um aparelho conceptual O problema referido em termos da História Naval contem-
de análise adaptado à realidade porânea é, aliás, geral em muitos campos do saber nacional. Há um
crónico déficit de produção teórica para analisar essa realidade
portuguesa. É esse o motivo porque própria e muito original que é o Portugal contemporâneo. É esta a
se tende a considerar este ramo principal causa do nevoeiro em que vivemos e das muitas ilusões e
da História como menor, quase mitos que alimentamos diariamente. A culpa é de todos nós, espe-
cialmente daqueles que têm a pretensão de ser historiadores, analis-
como um passatempo exercido tas, pensadores ou criadores e que muitas vezes se limitam a ser
em circuito fechado para um público tradutores ou autores de cronologias, sem terem mesmo consciên-
pequeno, com um tom de actividade cia das suas limitações.
saudosista dos séculos de ouro.
INTRODUÇÃO
tendência fatal é para tentar aplicar ao poder naval nacional
os conceitos desenvolvidos e válidos para os grandes
A poderes, conceitos que se prendem essencialmente com a
forma e a função do controlo oceânico em termos do poder global.
O resultado destas tentativas, como não podia deixar de ser, é triste,
pois fatalmente se verifica que Portugal não tem um papel signi-
ficativo na Época Contemporânea (desde 1808 para cá) em termos
do controlo activo dos oceanos do mundo.
A conclusão quase inevitável para os analistas mais distraídos é
que o poder naval pouco interessa nos dois últimos séculos da
História Portuguesa. Ainda há pouco tempo um consagrado jorna-
lista português resumia muito bem esta ideia do “senso comum”
ao dizer que “o poder naval português nos últimos dois séculos é
uma questão de meia dúzia de canhoneiras para África”…
É correcto dizer que Portugal perdeu a real capacidade de
exercer um controlo dos oceanos, mesmo em sentido regional e não
global, a partir de 1808. Esse ano marca a passagem de uma
esquadra de 13 naus e outras tantas fragatas, que ainda era uma
realidade activa e efectiva em termos do controlo da rota do Brasil, Representação sumária dos dois triângulos estratégicos portugueses, que estiveram
para outra de 2 naus antiquadas, que estão desarmadas a maior na base do pensamento nacional neste campo desde fins do século XIX. A vermelho
parte do tempo. É uma transição brutal e muito rápida, que se dá o triângulo tal como concebido até 1974, com um dos vértices em Cabo Verde e a preto
por motivos que não interessam para este artigo, sobretudo ligados a versão reduzida, posterior ao 25 de Abril.
à mudança do sistema internacional que acompanha as guerras
napoleónicas. Esta deficiência em termos da História Naval do Contemporâneo
Em termos do aparelho conceptual de análise dos grandes leva a que exista uma permanente apetência pela análise dos sécu-
poderes é inevitável a conclusão que, com a perda da capacidade los de ouro, quando Portugal era um poder naval global, que teve
de exercer um controlo efectivo dos oceanos pela Armada, o poder um papel fundamental na criação do primeiro sistema mundial. Já
naval deixou de ser importante para Portugal. A falácia deste George Ball, que contactou com os responsáveis portugueses em
raciocínio é que ele tem inerente a si a ideia de que só o controlo 1963, começava o relatório da sua missão por dizer que o país era
dos oceanos interessa em termos do poder naval, o que é uma afir- governado por um triunvirato formado por Vasco da Gama, o
mação errada para os pequenos estados. Significa isto que é Infante D. Henrique e Afonso de Albuquerque, pois nenhum dos
necessário desenvolver um aparelho conceptual de análise adapta- portugueses com que falou se esqueceu de referir com uma reve-
do à realidade e não se pode estar na dependência intelectual de rência algo saloia esses nomes. É uma catarse e uma cura do orgu-
uma importação directa das ideias e conceitos elaborados para lho ferido quase inevitável num país que tem uma aguda cons-
países como a Inglaterra e os EUA, só válidos para os grandes ciência da perda do seu poder relativo na passagem para o contem-
poderes. Fazer isso é como tentar pesar batatas em metros cúbicos, porâneo e ao qual faltam os elementos teóricos de análise necessá-
ou medir o volume de uma piscina em quilogramas. Há uma rios para uma melhor compreensão do que se passa. ✎
REVISTA DA ARMADA • NOVEMBRO 99 17