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do próprio Oriente, contudo, com pouco mais de quinze dias de
         antecedência a escolha recai sobre Cabral, fidalgo da casa do rei e
         filho do alcaide-mor de Belmonte, descendente de uma família que
         vinha desempenhando funções militares de defesa da fronteira da
         Beira Alta, desde há muitos anos. Esta hesitação aparente e a even-
         tual alteração de planos à última da hora será razão de mais uma
         polémica da História da Expansão Marítima Portuguesa, mas é
         possível que as razões estejam na própria sociedade portuguesa de
         então e nos grupos de pressão política que sempre existiram. Pedro
         Álvares Cabral era cavaleiro da Ordem de Cristo, como Vasco da
         Gama, mas a verdade é que as suas relações posteriores se viram
         para a Ordem de Santiago com quem esta rivalizava na influencia
         política junto do rei – cerca de 1503, depois de regressar da Índia,
         casa com Dona Isabel de Castro, filha de D. Fernando de Noronha,
         homem influente ligado à Ordem de Santiago. Pode ser um pouco
         especulativa esta dedução, mas não podem ser ignorados estes
         jogos subterrâneos que – como sempre acontece – acabam por
         determinar decisões públicas, sem que se perceba bem porque
         aconteceram.
           A partida não deixou de ser rodeada de grande pompa, havendo
         a habitual vigília na capela de Nossa Senhora de Belém, a missa
         rezada por D. Diogo Ortiz, a procissão até à praia do Restelo e o
         embarque perante uma multidão chorosa a olhar as velas que desa-
         parecem no horizonte, as figuras cada vez mais minúsculas onde
         vão os seus entes mais queridos, numa viagem de que muitos não
         regressarão. Apesar de não ter havido perdas por naufrágio a  carta de Pero Vaz de Caminha, escrivão da frota, e de um piloto
         doença tinha levado a maioria dos marinheiros da primeira viagem  anónimo que nos deixou um relato minucioso de toda a via-
         à Índia, por isso não é difícil imaginar a angústia de quem vê partir  gem). Seguramente não pararam para fazer aguada em
         filhos, pais, irmãos, noivos e maridos para um verdadeiro sorve-  Santiago – como chegou a ser comum nas esquadras que
         douro de almas que era a vida a bordo dos navios daquele tempo.  demandavam o sul – e a razão estará no cumprimento escrupu-
                                                              loso das indicações que Vasco da Gama dera a Pedro Álvares
           Cinco dias depois da partida – sábado 14 de Março – a  Cabral. Temos dessas instruções um pequeno fragmento (o
         esquadra passou à vista da Gran Canaria e em 22 do mesmo  resto está perdido) onde diz: “depois que em bõoa ora daqui
         mês estavam à vista da ilha de São Nicolau, no arquipélago de  partirem faram seu caminho direito a ylha de Santiago e se ao
         Cabo Verde (situação onde coincidem as versões da célebre  tempo que hy chegarem teverem agoa em abastança pera qua-
                                                              tro meses nam devem passar na dita ilha nem fazer nehüua
                                                              demora […]”. Esta instrução é bastante significativa da noção
                                                              que Vasco da Gama tinha do que se poderia passar no Atlântico
                                                              Sul em termos de ventos favoráveis para alcançar o Cabo da
                                                              Boa Esperança. A verdade é que a esquadra demorara menos
                                                              tempo do que a anterior a fazer o percurso até Cabo Verde, por
                                                              isso seria normal que tivesse água suficiente para os tais quatro
                                                              meses e decidisse não parar.
                                                               Por esta altura desapareceu um dos navios por razões que são
                                                              desconhecidas, não parecendo que esse facto possa ser imputado
                                                              a qualquer temporal. Existem, no entanto muitas contradições
                                                              quanto a que navio era. Aliás, os cronistas do século XVI
                                                              (Castanheda, Barros, Góis) não têm a mesma versão dos que
                                                              acompanharam a viagem e se deduzimos que o navio não mais
                                                              foi encontrado é porque o próprio D. Manuel, numa carta aos
                                                              Reis Católicos escrita mais tarde, refere que não tivera mais notí-
                                                              cias desse navio.
                                                               Observando os documentos e o estudo que deles fez o Contra-
                                                              -Almirante Max Justo Guedes (Marinha Brasileira) veremos que os
                                                              navios devem ter passado entre a Ilha de São Nicolau e as do Sal e
                                                              Boavista e seguindo de forma a deixar a ilha de Santiago por bom-
                                                              bordo. Depois devem ter continuado o seu caminho para sul até
                                                              que o vento lhes fosse escasseando e metessem a proa a SW e a
                                                              WSW entrando na volta do mar do Atlântico Sul. Como dizem as
                                                              instruções de Vasco da Gama: “… fazerem seu caminho pelo sul e
                                                              se ouverem de gynar seja sobre ha banda do sudoeste. E tanto que
                                                              neles deer o vento escasso devem hyr na volta do mar ate meterem
                                                              o cabo de Bõoa Esperança em leste franco […]”. O que acontece é
                                                              que o vento alísio de NE sopra de feição até perto do equador tér-
                                                              mico, mas a partir daí os navios deparavam-se com os alísios do SE
                                                              (do Hemisfério Sul) que não os impediam de seguir directamente
                                                              para o Cabo. Vasco da Gama aconselha a que contornem esses ven-
                                                              tos, como ele certamente também fez, demandando a ponta sul da
         Enseada do Rio de Janeiro. Roteiro da Costa do Brasil (1586).  África depois de os contornar. Foi com esta volta do mar que a frota
         18 MAIO 2000 • REVISTA DA ARMADA
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