Page 164 - Revista da Armada
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do próprio Oriente, contudo, com pouco mais de quinze dias de
antecedência a escolha recai sobre Cabral, fidalgo da casa do rei e
filho do alcaide-mor de Belmonte, descendente de uma família que
vinha desempenhando funções militares de defesa da fronteira da
Beira Alta, desde há muitos anos. Esta hesitação aparente e a even-
tual alteração de planos à última da hora será razão de mais uma
polémica da História da Expansão Marítima Portuguesa, mas é
possível que as razões estejam na própria sociedade portuguesa de
então e nos grupos de pressão política que sempre existiram. Pedro
Álvares Cabral era cavaleiro da Ordem de Cristo, como Vasco da
Gama, mas a verdade é que as suas relações posteriores se viram
para a Ordem de Santiago com quem esta rivalizava na influencia
política junto do rei – cerca de 1503, depois de regressar da Índia,
casa com Dona Isabel de Castro, filha de D. Fernando de Noronha,
homem influente ligado à Ordem de Santiago. Pode ser um pouco
especulativa esta dedução, mas não podem ser ignorados estes
jogos subterrâneos que – como sempre acontece – acabam por
determinar decisões públicas, sem que se perceba bem porque
aconteceram.
A partida não deixou de ser rodeada de grande pompa, havendo
a habitual vigília na capela de Nossa Senhora de Belém, a missa
rezada por D. Diogo Ortiz, a procissão até à praia do Restelo e o
embarque perante uma multidão chorosa a olhar as velas que desa-
parecem no horizonte, as figuras cada vez mais minúsculas onde
vão os seus entes mais queridos, numa viagem de que muitos não
regressarão. Apesar de não ter havido perdas por naufrágio a carta de Pero Vaz de Caminha, escrivão da frota, e de um piloto
doença tinha levado a maioria dos marinheiros da primeira viagem anónimo que nos deixou um relato minucioso de toda a via-
à Índia, por isso não é difícil imaginar a angústia de quem vê partir gem). Seguramente não pararam para fazer aguada em
filhos, pais, irmãos, noivos e maridos para um verdadeiro sorve- Santiago – como chegou a ser comum nas esquadras que
douro de almas que era a vida a bordo dos navios daquele tempo. demandavam o sul – e a razão estará no cumprimento escrupu-
loso das indicações que Vasco da Gama dera a Pedro Álvares
Cinco dias depois da partida – sábado 14 de Março – a Cabral. Temos dessas instruções um pequeno fragmento (o
esquadra passou à vista da Gran Canaria e em 22 do mesmo resto está perdido) onde diz: “depois que em bõoa ora daqui
mês estavam à vista da ilha de São Nicolau, no arquipélago de partirem faram seu caminho direito a ylha de Santiago e se ao
Cabo Verde (situação onde coincidem as versões da célebre tempo que hy chegarem teverem agoa em abastança pera qua-
tro meses nam devem passar na dita ilha nem fazer nehüua
demora […]”. Esta instrução é bastante significativa da noção
que Vasco da Gama tinha do que se poderia passar no Atlântico
Sul em termos de ventos favoráveis para alcançar o Cabo da
Boa Esperança. A verdade é que a esquadra demorara menos
tempo do que a anterior a fazer o percurso até Cabo Verde, por
isso seria normal que tivesse água suficiente para os tais quatro
meses e decidisse não parar.
Por esta altura desapareceu um dos navios por razões que são
desconhecidas, não parecendo que esse facto possa ser imputado
a qualquer temporal. Existem, no entanto muitas contradições
quanto a que navio era. Aliás, os cronistas do século XVI
(Castanheda, Barros, Góis) não têm a mesma versão dos que
acompanharam a viagem e se deduzimos que o navio não mais
foi encontrado é porque o próprio D. Manuel, numa carta aos
Reis Católicos escrita mais tarde, refere que não tivera mais notí-
cias desse navio.
Observando os documentos e o estudo que deles fez o Contra-
-Almirante Max Justo Guedes (Marinha Brasileira) veremos que os
navios devem ter passado entre a Ilha de São Nicolau e as do Sal e
Boavista e seguindo de forma a deixar a ilha de Santiago por bom-
bordo. Depois devem ter continuado o seu caminho para sul até
que o vento lhes fosse escasseando e metessem a proa a SW e a
WSW entrando na volta do mar do Atlântico Sul. Como dizem as
instruções de Vasco da Gama: “… fazerem seu caminho pelo sul e
se ouverem de gynar seja sobre ha banda do sudoeste. E tanto que
neles deer o vento escasso devem hyr na volta do mar ate meterem
o cabo de Bõoa Esperança em leste franco […]”. O que acontece é
que o vento alísio de NE sopra de feição até perto do equador tér-
mico, mas a partir daí os navios deparavam-se com os alísios do SE
(do Hemisfério Sul) que não os impediam de seguir directamente
para o Cabo. Vasco da Gama aconselha a que contornem esses ven-
tos, como ele certamente também fez, demandando a ponta sul da
Enseada do Rio de Janeiro. Roteiro da Costa do Brasil (1586). África depois de os contornar. Foi com esta volta do mar que a frota
18 MAIO 2000 • REVISTA DA ARMADA