Page 98 - Revista da Armada
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- Para quem  gosta e tem orgulho do seu  para entre eles podermo -nos movimentar e  grupos de marinheiros que, a poder de bra-
         navio, por vê-lo vencer as mais alterosas va-  defendermo-nos do mar. Depois, tentámos  ços, controlavam os movimentos da embar-
         gas, sacrificando-se para nos defender,  guar-  preparar os meios de salvamento existentes  cação de modo a que esta passasse a uma
         dando-nos no seu ventre… Agora ali, embora  a bordo, mas não tivemos qualquer êxito,  distância que possibilitasse agarrar os náu-
         não fosse o nosso, ficámos com aquela sen-  o mar devolvia tudo ao convés, enrolando-  fragos e não batesse no costado da fragata.
         sação cravada nos nossos corações e o som  -nos e agredindo-nos com esses utensílios  Deste modo, em plena noite, iniciá mos a
         nos  ouvidos para o resto da nossa vida.  não permitindo que se movimentasse qual-  recolha que começou de forma dramática,
           Após a colisão, confirmou-se o que mais  quer material, apenas nós, p´rali andáva-  ao fazermos a embarcação passar próximo,
         temíamos, o navio descambou para sul, ficou  mos, todos molhados pela água gelada que  esta descia a grande velocidade e só um dos
         no centro daquele inferno e continuou a des-  nos assolava constantemente.   grupos conseguiu deitar mão a um náufrago,
         pedaçar-se. Na ponte de comando, através   Na ponte de comando, mantinham os  (por sinal uma criança do sexo feminino, de
         de holofotes, encetou-se a procura de náu-  holofotes sobre a embarcação com os náu-  uns cinco ou seis anos), apenas agarrou a
         fragos  e, ao fazê-los  incidirem sobre aque-  fragos, seguiam os seus movimentos e con-  gola do cinto de salvação e enquanto a em-
         la zona, depois de alguma insistência con-  tinuavam a deslocar a fragata na sua direc-  barcação se afastava rapidamente, vimos os
         seguia-se, por vezes, lobrigar uma pequena  ção. A situação, entretanto, começava a ser  marinheiros ficar com o cinto nas mãos e a
         embarcação apinhada de gente. Porém, essa  desesperante, porque além de estarmos a  criança a descer para o mar… felizmente,
         embarcação aparecia relativamente perto  ficar próximo do Cabo, alguns montes de  embora com muita folga, não se tinham es-
         das rochas e onde as vagas eram mais altas.  madeira e contentores que se desprendiam  quecido de passar a fita do cinto por entre as
         Não muito distantes e com a fragata já em  do RIVER GURARA subiam e desciam as va-  pernas e a criança ficou pendurada, sendo
         grandes dificuldades de equilíbrio, sentimos  gas, junto da embarcação, confundindo-se  imediatamente recuperada para bordo. Foi
         que haviam  poucas probabilidades e muito  com esta. Apesar disso, a fragata continua-  neste sistema, lutando muito com o mar, es-
         risco em fazê-la deslocar-se para aquele lo-  va a aproximação, mas ao chegar debaixo  quecendo quanto os nossos corpos estavam
         cal. Assim sendo, foi com alguma surpresa  da sombra ainda mais escura, criada pelos  a sofrer e o risco permanente, que durante
         que se ouviu a voz do Comandante:   altos rochedos, concluiu-se que o descam-  toda a madrugada com maior ou menor di-
           - Vamos chegar àquela embarcação e re-  bar daquela para o lado de terra era mui-  ficuldade, fomos resgatando pessoas, uma
         colher os náufragos!               to rápido. Assim, momentaneamente, não  a uma. Quase manhã, apenas nos faltava
           Seguidamente, dirigiu-se ao interlocutor   avançou, ficando a umas escassas centenas  recuperar um dos 27 náufragos. Era um ho-
         e ordenou-lhe que juntasse o pessoal sufi-  de metros das rochas e num emaranhado  mem alto, muito forte, que durante toda a
         ciente para efectuar a recolha na tolda, a  de vagas que mais parecia o respirar de  noite auxiliou no encaminhamento e reco-
         sotavento.                         um vulcão.                         lha de outros náufragos. Agora, faltava ele,
           Perante isto, houve um silêncio geral na   No convés a ré, embora comovidos pela  estava esgotado e sem forças para se movi-
         ponte de comando. Como já o conhecía-  situação daquelas pessoas, víamos o dan-  mentar. Após algum esforço para lhe che-
         mos de outras missões, notámos quanto dis-  çar da fragata que, tão depressa afocinhava  garmos, caiu prostrado no fundo. Tivemos,
         farçou ao dar aquela ordem, pois previa-se  profundamente nas vagas, como se erguia  então, de  deixar a embarcação embater no
         como seria difícil alguém manter-se no ex-  quase a pique para as vencer sofrendo incli-  costado da fragata, mesmo assim não era
         terior da fragata…                 nações nunca antes observadas, pensamos  fácil porque esta sofria grandes inclinações
           Esta, ao entrar na zona sul do Cabo, co-  que já nada podíamos fazer para as salvar.  e aquela  passava junto a nós numa velo-
         meçou a sofrer o efeito de vagas desconcer-  Junto a nós, o oficial imediato mantinha-se  cidade estonteante, tornando quase impos-
         tadas e de uma enorme altura que, ou en-  em contacto com a ponte de comando e,  sível esta junção. Todavia, o desespero es-
         travam em fúria pela proa, ou rebentavam  como não ouvíamos essas comunicações,  tampado nos olhos do náufrago, dava-nos
         com grande estrondo nas amuradas, criando,  foi uma surpresa arrepiante  voltarmos a  força para conti nuar. A nossa persistência
         assim, uma situação quase impossível de vi-  ver a fragata aproar na direcção das rochas.  teve êxito cerca de uma hora depois, quan-
         vência a bordo.                    Avançou rapidamente até próximo da em-  do vimos as mãos férreas dos marinheiros
           Saímos da ponte de comando e, nas esca-  barcação com os náufragos, onde guinou  agarrá-lo para não mais o largarem. Nessa
         das junto ao centro de comunicações, cruzá-  de forma  que nos possibilitou, mesmo aos  altura, já o sol raiava, tivemos, então, tem-
         mo-nos com o chefe de quarto daquele cen-  trambolhões, passar-lhe cabos, através de es-  po para levantar a cabeça e olhar em nosso
         tro. Era um velho lobo do mar, que tinha por  pingardas. Depois, assumimos o  controlo  redor, foi quando verificámos como estáva-
         hábito, na brincadeira, achincalhar-nos em  dos seus movimentos, mas não era fácil por-  mos ali bem nas barbas do Cabo Espichel e
         cada vez que durante os temporais saíamos  que esta subia e descia em flecha e, apesar  como toda aquela operação se desenrolou
         em missões para o exterior da fragata. Atira-  de estar perto, apenas a víamos na crista da  bem juntinho às rochas.
         va-nos com frases como esta: Amigo, irmão,  vaga,  quando era seguida pelos holofotes.   Depois, a fragata saiu daquele pandemó-
         camarada, nem calculas o que te espera lá  Porém, os náufragos olhavam-nos de perto,  nio, fez-se ao largo e, com os cento e setenta
         fora… Ao encará-lo ali bem agarrado a um  talvez  por isso notava-se-lhe  alguma espe-  homens de guarnição  mais os 27 náufragos.
         pé de carneiro, quando esperávamos ouvir  rança no rosto, que não compartilhávamos  Foi lindo ver como ela vaidosa, agora mais
         aquela frase ou outra parecida, apenas vimos  porque, não podendo utilizar os meios de  felina, subia as altas montanhas de água, ru-
         o seu olhar triste, mudo e até a deixar trans-  salvamento, não tínhamos grandes possi-  mando ao porto de Lisboa. Nessa altura o ofi-
         parecer um pouco de piedade por nós.  bilidades de os recolher. Como não havia  cial imediato, dirigindo-se-nos exclamou:
           Juntámos o pessoal que julgámos sufi-  tempo a perder, era portanto, necessário   - Então não se sentem desconfortáveis?…
         ciente e, com o oficial imediato dirigimo-  encontrar a forma de actuar. Assim, houve  Estão há várias horas encharcados com água
         -nos para o exterior no convés a ré mas, ao  que inventar e recorrer à mais profunda co-  gelada e a temperaturas muito baixas!…
         abrirmos a escotilha que lhe dava acesso,  ragem… Formámos dois grupos de bravos   - E o senhor, que supervisionou tudo
         a força das vagas que inundavam aquela  marinheiros que, amarrados aos vergueiros  aqui junto de nós e nas mesmas condi-
         zona não nos permitiu sair. Apesar disso,  de estibordo e debruçando-se para fora, dei-  ções, como está?
         houve um marinheiro mais afoito que nos  tavam a mão a um náufrago por grupo em   Não houve resposta, fixámo-nos com os
         escapou, foi imediatamente enrolado pela  cada vez que a embarcação subia até ao  olhos rasos de água, orgulhosos do dever
         água, ficando, por sorte, agarrado aos ver-  nível do convés da fragata, sendo imedia-  cumprido…
         gueiros da popa. Nessa altura, começámos  tamente auxiliados por outro grupo que os                   Z
         a sair amarrados a  cabos suportados no  puxava para bordo e transportava para o in-  Ilustrino Alexandre Júnior
         interior e, já no exterior, passámos outros,  terior. Colocámos, igualmente, outros dois          Sar. Aj. A

         24  MARÇO 2004 U REVISTA DA ARMADA
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