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A MARINHA DE D. JOÃO III (10)
O conflito dos governadores
O conflito dos governadores
bandonada e destruída que foi a for- nador e conseguir que ele regressasse à Índia Índia. Sofreu calado a nomeação de D. Henri-
taleza de Calecut – como ficou dito nos próximos meses. que de Meneses, mas pressente-se a ansiedade
Ano número anterior – D. Henrique É difícil conhecer todos os pormenores des- na forma como se apressou a viajar para Cana-
de Meneses voltou a Cochim, de onde par- ta conspiração do vedor da fazenda, mas sa- nor, logo que soube da sua morte. E não é difícil
tiu para Goa, com intenção de efectuar uma bemos que tivera um pequeno desaguisado perceber como uma secreta ambição – talvez
campanha até ao Golfo Pérsico, na legítima a princípio e gerada na vonta-
monção seguinte. Pensou, talvez, em de de bem servir – pode ser alimentada
atacar Diu, como diz Castanheda, de forma perversa cegando a consciên-
mas não saberemos se isso era ver- cia e o siso na perspectiva de um mo-
dade porque, entretanto, alterou os mento de glória. Afonso Mexia era o
seus planos dirigindo-se de novo para fiel depositário das cartas de sucessão
o sul. A verdade é que lhe apareceu e foi tentado a manipulá-las, ao mes-
uma ferida persistente numa perna, mo tempo que Lopo Vaz de Sampaio
cuja gravidade desaconselhava uma aceitou a manipulação que fazia dele
longa expedição. O que nos dizem os o governador da Índia. Ambos de-
cronistas é que – muito a seu gosto – vem ter contado com a cumplicidade
fez a viagem dando caça às pequenas da horda de oportunistas que sempre
embarcações que desafiavam o poder surgem nestas circunstâncias.
português, quer transportando pro- Quando Pêro de Mascarenhas veio
dutos considerados como proibidos de Malaca, dirigiu-se a Cochim, onde
(porque destinados ao comércio de Afonso Mexia não o deixou entrar e
Meca ou do Guzerate), quer porque lhe comunicou que o governador da
atacavam os navios lusitanos, refu- Índia era Lopo Vaz de Sampaio, por
giando-se nas inúmeras barras pro- nova ordem de El-Rei, que reformu-
tegidas por labirintos de baixos que lara o que previra nas cartas que dera
só deixavam passar quem os conhe- em 1524. Esta “nova ordem” consti-
cia bem. Pensava alcançar Cochim e tuía a essência da trama que impedi-
recolher-se para curar a chaga que ria Mascarenhas de assumir o cargo. O
o atormentava, mas muito perto de vedor da fazenda (agora, também, ca-
Cananor, e na sequência de uma des- pitão de Cochim) intimava-o a aban-
sas pequenas sortidas de combate, a donar os galeões onde vinha, a entre-
ferida da perna agravou-se irrever- gar a fazenda da coroa, e, querendo
sivelmente, obrigando-o a arribar a requerer de sua justiça, poderia ir a
esse porto. A 2 de Fevereiro de 1526, Goa fazê-lo, numa caravela que, para
faleceu numa agonia dolorosíssima, isso, lhe daria. Pêro de Mascarenhas
deixando vazia a governança da Ín- acabou por ser preso e enviado para
dia, mais uma vez. Lopo Vaz de Sampaio. o reino, na companhia de todos aque-
Quando isto aconteceu, estava em Livro de Lisuarte de Abreu. les que não aceitavam esta situação,
Cochim o feitor Afonso Mexia e o capitão da com Pêro de Mascarenhas, antes deste partir e D. João III acabou por saber de tudo o que
fortaleza, Lopo Vaz de Sampaio, que se apres- de Cochim, no ano anterior. O que nos rela- sucedera. Nuno da Cunha foi o governador
saram a viajar até Cananor onde deveria ser tam as crónicas é um episódio simples, em nomeado, que levou a incumbência de pren-
aberta uma segunda carta de sucessão, das que ambos discutiram por causa da carga de der Lopo Vaz e enviá-lo para Lisboa onde foi
três que D. João III entregara em Lisboa, a um navio: queria Mascarenhas levar arroz julgado e condenado. Contou com a atenuante
quando da partida da esquadra de Vasco da num paiol onde Mexia entendia que deve- de trazer um palmarés de notáveis feitos de ar-
Gama, em 1524. Quem tinha o encargo de as riam ser carregadas umas roupas da fazen- mas, e, apesar do sucedido, o seu retrato cons-
guardar e fazer abrir era o próprio vedor da da real. Não se entenderam, insultaram-se ta na célebre Galeria de Vice-Reis, em Goa.
fazenda, que já o fizera a quando da morte mutua mente e quase se travaram de razões. Achou-se a si próprio um governador da Índia
do Almirante. Segundo a vontade de El-Rei o Parece uma coisa ridícula, mas pode ser a e, nalguns aspectos, comportou-se como tal,
governo deveria ser entregue a Pêro de Mas- ponta de um iceberg que encerra uma raiva mas não enganou a História que pela pena dos
carenhas, um dos companheiros de viagem mais profunda, quem sabe, vinda de Lisboa cronistas nos deu conta da sua indignidade.
do Vice-Rei, que comandara um dos navios, ou gerada na viagem até à Índia. Muitos o temeram, mas poucos o respeitaram,
e que fora tomar posse da capitania de Ma- Aberta a terceira carta, apontava o nome de e Afonso Mexia serviu-se dele, manipulando
laca. O acto decorrera com toda a solenidade Lopo Vaz de Sampaio que jurou tomar conta a sua ambição. Infelizmente, estas situações
e segundo as regras que foram regimentadas do cargo de forma provisória, entregando-o insólitas não foram raras, mas estudar e fazer
pela própria coroa, aceitando todos o resulta- logo que Pêro Mascarenhas aparecesse para o História é compreender, também, estes aspec-
do e jurando obedecer ao novo governador. reclamar. Acontece, contudo, que esta situa ção tos do comportamento humano, porque da
Contudo, passado que era apenas um dia, provisória não agradava ao vedor, que tinha sua percepção e análise resulta uma melhor
Afonso Mexia começou a manipular os res- agora um aliado importante no novo governa- compreensão do próprio Homem.
tantes fidalgos para que se abrisse a terceira dor. Lopo Vaz era um homem ambicioso; me- Z
carta de sucessão, usando como argumento recera a confiança de Vasco da Gama e isso não J. Semedo de Matos
que era muito moroso avisar o novo gover- o deixara indiferente quanto ao seu futuro na CFR FZ
REVISTA DA ARMADA U MARÇO 2006 17