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Entrevista com o Comandante da «Sagres»


               m navio é o casco, o seu nome e o  «Gorch Foch» (GF), construido em 1958, 20   CVM - Foi lançado à água em 30 de Outubro
               mito que gera nos que o viveram, o  anos depois.                de 1937, três meses e meio depois de assente a
         Uvivem e o viverão, assim não haja ro-  RA – Lembrarmo-nos da sua primeira vi-  sua quilha…
         turas nesse fado.                  sita a Lisboa…                       RA – Não diga mais!
           O quingentésimo décimo quinto casco sa-  CVM – A sua construção, disse-me o coman-  CVM – Outro tanto e era incorporado e um
         ído dos estaleiros da Blohm und Voss, em                              mês depois  iniciava a sua primeira viagem de
         Hamburgo, onde, nos anos 60/70, as nossas pri-                        instrução... mas dois dias depois, no estreito
         meiras corvetas foram construídas, foi cenário                        de Dover, sob cerrado nevoeiro, colidiu com o
         comum de várias vidas vividas sob diferentes                          «Trojan Star».
         nomes, línguas e culturas.                                              RA – Ainda não havia radares!
           Revemos na actual «Sagres» o que foi vivi-                            CVM – Fez outras viagens, nomeadamente
         do na anterior que, para muitos, já não é mais                        duas a sul do Equador, mas permaneceu em
         do que a memória dum decrépito casco para                             Kiel de 39 a 44, donde saiu para o Báltico, em
         ali encostado… feito dormitório.                                      instrução e, sob forte temporal, embateu numa
                                                                               mina sobrevivendo graças a dois factores.
           RA – Comandante Vale Matos, é assim que                               RA – Quais? A soldadura a topo…
         ainda se lembra da velha «Sagres»? Quanto à                             CVM – A soldadura integral ainda não es-
         história da actual?                                                   tava desenvolvida. Os factores referidos foram
           CVM – Como «Santo André», na BNL, já de-                            a compartimentação estanque e o facto de na-
         gradada, quando entrei na Escola Naval. Quan-                         vegar em conserva com o «HW» donde lhe
         to a esta, o meu conhecimento da sua história                         terá vindo apoio. Reparado, foi levado de Kiel
         cresceu com os meus embarques nela, como                              para Flensburg, o que o poupou aos bombar-
         cadete, oficial e agora comandante.                                    deamentos.
           RA – Cadete do 2º ano?                                                No final da II GG o «HW» e o «ALS», coube-
           CVM – Do 1º, em 1980, numa viagem ao  dante Jan Fock, deveu-se muito ao primeiro co-  ram aos Americanos mas o «ALS» acabou por
         Brasil e Cabo Verde. Fomos de avião apanhar  mandante da actual “Sagres”, enquanto «ALS»,  ser, no âmbito das compensações de guerra,
         o navio a Salvador. Depois visitámos o Rio,  o Fregattenkapitan Bernhard Rogge, que, em  cedido ao Brasil, em 1948.
         Santos, Recife e, no regresso, o Mindelo, onde  1957, aquando da reconstrução da Marinha da   RA – Que é que os terá levado a pô-lo a na-
         fiz 18 anos.                        Alemanha Federal, foi reintegrado como ofi-  vegar em 44?
           RA – Sim?! Um primeiro embarque?  cial general.                       CVM – É referida a falta de preparação ma-
           CVM – Já fazíamos embarques de fim de   RA – E com  bons argumentos…  rinheira do seu pessoal.
         semana. Mas foi uma experiência fascinante,   CVM – Sem dúvida.         RA – O que revela a importância que os Ale-
         como não podia deixar de ser…                                           mães atribuíam ao treino de vela …
           RA – Imaginamos! Nessas idades a his-                                   CVM – E atribuem! Um grande veleiro é
         tória do navio não seria um interesse de-                               uma plataforma privilegiada para a forma-
         terminante.                                                             ção prática de mar. O contacto mais directo
           CVM – Claro, mas sabíamos que fora                                    com os factores ambientais e os seus efeitos,
         alemão, construído com outros navios ir-                                as características do navio e do trabalho ma-
         mãos e, enquanto brasileiro, ainda hoje se                              nual em grupo, com desafios e consequên-
         pode ver na roda de leme, meio apagado,                                 cias mais imediatas e notórias das acções de
         o nome «Guanabara» e a inscrição “Tudo                                  cada um promovem o espírito de equipa, as
         Pela Pátria”…                                                           relações interpessoais, o sentido das respon-
           RA – E em alemão?                                                     sabilidades, o desenvolvimento da autocon-
           CVM – A placa na chaminé, a indicar                                   fiança e do espírito marinheiro…
         “Schiff 515”..                                                            RA - Trabalhar nos mastros!
           RA – Ah! Pois. (Risos)                                                  CVM – Sim. Acerca da importância dos
           Disse que teve “irmãos”?                                              grandes veleiros como navios escola costu-
           CVM – Sim. Fez parte duma encomen-                                    mo dar o exemplo da Marinha Noruegue-
         da de uma série de quatro navios para a                                 sa que considero extremamente elucidativo.
         Marinha Alemã, mas o quarto, o «Herbert                                 Com o terminar da Guerra Fria e a conse-
         Norkus» (HN),  nunca foi concluído, dado                                quente redução dos meios navais, verificou-
         o início da guerra  de 39-45. Os primeiros   A “Sagres” navegando à vela.  -se um maior emprego de simuladores para
         três foram o “Gorch Fock”, de 1933, que, depois   RA – Diga-nos, “a”,  enquanto barca, ou “o”  o treino do pessoal. No entanto, alguns aciden-
         da II GG, foi o «Tovarish» soviético, o «Horst  na qualidade de Navio-Escola?  tes a bordo levaram a Marinha Norueguesa a
         Wessel» (HW), hoje o «Eagle», e o «Albert Leo   CVM - Geralmente usamos o feminino: a  recentrar as preocupações na formação de base.
         Schlageter» (ALS), que veio a ser «Guanabara»  “Sagres”, a barca. No entanto, para frisar o seu  Entretanto, em 2000, quando o «GF» se encon-
         (G) do Brasil e é agora a «Sagres». Houve ain-  papel como navio escola, empregamos o mas-  trava a ser sujeito a uma grande modernização,
         da um quinto navio de encomenda romena,  culino: o Navio Escola “Sagres”.  a Marinha Alemã  pediu o aluguer do veleiro
         o «Mircea», de 1938. Parte do aparelho desti-  RA – De facto! E enquanto alemão…  norueguês “Statsraad Lehmkuhl” (SL) para
         nado ao «HN» veio a ser integrado no actual  como foi?                nele fazer o tradicional embarque de cadetes.

         14  SETEMBRO/OUTUBRO 2007 U REVISTA DA ARMADA
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