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A MARINHA DE D. JOÃO III (29)
São Francisco Xavier: um percurso até à Índia.
São Francisco Xavier: um percurso até à Índia.
Panorama de Lisboa e partida de S. Francisco Xavier para a Índia.
Autor desconhecido – Séc. XVIII. Noviciado da Cotovia, MNAA.
arecerá, à primeira vista, surpreen- das a jovens portugueses. Gouveia foi uma Ali se encontravam quando lhes chegou o
dente que a figura de S. Francisco Xa- figura notável, com um prestígio académico convite para levarem a sua acção missionária à
Pvier surja relacionado com a Marinha de grande relevo, e um papel determinante Índia, supondo-se que na origem deste pedido
de D. Jo ão III, mas há razões importantes para nas relações entre Portugal e a França numa esteja uma carta do bispo D. Jerónimo Osório
que tal aconteça. Em boa verdade é incontorná- altura em que as rivalidades entre Carlos V dirigida ao velho perfeito de S. Bárbara, Diogo
vel a observação do seu percurso até Portugal, e Francisco I punham permanentemente em Gouveia, onde falava da conversão dos mala-
à Índia e ao Extremo Oriente, porque ele reve- p erigo a neutralidade portuguesa. bares e das carências de quem desenvolvesse
la uma faceta do espírito com que as viagens O Colégio de Santa Bárbara foi um dos mais a acção missionária. O conteúdo da carta foi
ultramarinas foram encaradas na Europa, per- reputados de Paris, colocando-se no centro dos enviada a Simão Rodrigues, e entusiasmou
mitindo analisar uma fonte privilegiada dessas mais importantes debates da época. Nele lec- o grupo de jovens padres recém-ordenados
mesmas viagens, como é a vastíssima corres- cionou, por exemplo, a figura de Jean Fernel, que procuravam uma missão de grande vul-
pondência dos jesuítas para os seus superiores ilustre matemático que publicou, nos anos vinte to. D. João III formalizaria, entretanto, o con-
na Europa. São relatos regulares e pormenori- do século, várias obras de matemática e astro- vite por carta que fez chegar a Inacio, através
zados da vida quotidiana e dos quadros sociais nomia, onde referiu com particular atenção a do embaixador português em Roma, D. Pedro
onde circulavam os navios e marinheiros por- prática náutica portuguesa. E Francisco Xavier de Mascarenhas. Foi decidido que partiria de
tugueses, permitindo uma excelente reconstru- presenciou tudo isto, como presenciou também imediato para Lisboa, por via marítima, e outro
ção dos espaços que foram palco da aventura o violento debate entre Beda e Erasmo, no auge padre deveria vir com o próprio D. Pedro, por
quinhentista. Comecemos, pois, por observar dos conflitos entre católicos e reformadores que terra, quando este regressasse à pátria. A pri-
o percurso de um missionário estrangeiro do levou à prisão e à morte muitos apaixonados meira escolha recaiu sobre Nicolas Bobadilla,
século XVI, tentando compreender como ele defensores de ambas as partes. Foi, aliás, neste um jovem de nacionalidade castelhana, ausen-
próprio foi fascinado pelas navegações por- ambiente que nasceu o grupo de estudantes e te no reino de Nápoles, mas a doença deste fez
tuguesas e como lhe foi crescendo a vontade mestres da faculdade parisiense que, sob o pa- com que avançasse Xavier, que aceitou a decisão
de viajar até ao Oriente. trocínio espiritual de Inácio de Loyola, se reunia com grande entusiasmo e esperança.
Francisco nasceu em 1506, no “solitário cas- mensalmente junto a uma capela erigida no su- Em Julho de 1540 chegou a Lisboa, foi rece-
telo” de Xavier, encravado num pequeno pe- posto local do martírio de Saint Denis, na colina bido pelo rei e alojado com Simão Rodrigues
nhasco ,sobranceiro a uma passagem estraté- de Montmartre [de Mont Martyr ou monte dos numa casa situada no Rossio, Em frente ao
gica entre Navarra e Aragão, sobre caminhos mártires], onde juraram os votos que viriam a Hospital de Todos os Santos e perto do palá-
danados e terríveis, onde invernos gelados e ser a base da Companhia de Jesus. Um dos par- cio dos Estaus, onde vivia o rei. D. João III ficou
sombrios alternavam com verões de sobressal- ticipantes foi o português Simão Rodrigues de bastante impressionado com a dimensão inte-
to, marchas de soldados e pilhagens. Com 19 Azevedo, que também frequentara o Colégio lectual e humana dos dois jesuítas, e pretendeu
anos partiu para Paris onde começou a estudar de Santa Bárbara. que eles ficassem em Portugal, com o objectivo
filosofia no Colégio de Santa Bárbara, prova- Em 1534 Inácio deixou Paris e, em 1536, de fundar em Coimbra um colégio de estudan-
velmente com a secreta ambição de vir a ocu- os restantes companheiros partiram também tes à imagem de Santa Bárbara. Foi trocada cor-
par um elevado cargo eclesiástico, para o qual com o objectivo de alcançar a Terra Santa em respondência com Roma, tendo em vista os no-
chegou a ser convidado alguns anos mais tarde, peregrinação. Atravessaram todo o continen- vos planos do rei português, decidindo-se que
mas que recusaria liminarmente. O Colégio de te e alcançaram Veneza no princípio de 1537, Simão ficaria em Portugal, mas Xavier partiria
Santa Bárbara era um dos muitos colégios da esperando poder embarcar num navio que os para a Índia tão breve quanto fosse possível.
Universidade parisiense, situado no coração do levasse à Palestina. O Mediterrâneo vivia, con- Assim aconteceu na armada do ano de 1541,
Quartier Latin, muito perto dos mais importan- tudo, sob a ameaça turca e a república venezia- no navio de Martim Afonso de Sousa, que ia
tes acontecimentos culturais vividos pela Eu- na não escapou ao bloqueio dos navios de Bar- destinado ao cargo de governador. Começava
ropa do princípio do século XVI. Dirigia-o um baroxa. Tiveram de ficar por Itália, centrando a a peregrinação oriental de S. Francisco Xavier
prestigiado prelado português, de nome Diogo sua actividade em Roma, onde se colocaram à que terá continuidade na próxima revista.
Gouveia, natural de Beja, figura muito próxima disposição do Papa Paulo III, esperando o re- Z
do rei D. João III, de quem obteve o financia- conhecimento pontifício da congregação que J. Semedo de Matos
mento para várias bolsas de estudo destina- queriam formar. CFR FZ
20 DEZEMBRO 2007 U REVISTA DA ARMADA