Page 193 - Revista da Armada
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O piloto João de Lisboa
O piloto João de Lisboa
2. As primeiras navegações
omo era prática naquele tempo, e a o testemunho do cartógrafo castelhano Alonso Por outro lado, a existência de uma angra
exemplo do que sucedia com os demais de Santa Cruz parece aludir à participação de com o seu nome na costa ocidental africana,
Cpilotos coevos, também João de Lisboa João de Lisboa na viagem de descobrimento do constitui um precioso indício do envolvimento
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terá igualmente recebido a sua instrução a bor- caminho marítimo para a Índia : de João de Lisboa noutras viagens de explora-
do dos navios. Tal facto não surpreende, pois só «Juan de Lisbôa, afamado piloto portugués en la car- ção. O que nos deixou de certa forma intriga-
muito mais tarde, a partir do segundo quartel do rera de la India, que por haber ido al descobrimento dos, é que este topónimo aparece apenas numa
século XVI, com o advento da famosa aula do de ella […]» . única carta. Trata-se do denominado planisfério
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Cosmógrafo-mor, o ensino da denominada Arte Arquivo CFR Semedo de Matos de Cantino, aquele que é considerado o maior
de Navegar passou a merecer especial atenção, monumento da cartografia portuguesa, onde a
pela necessidade de dotar os pilotos com uma referida angra surge aproximadamente nos 14º
formação teórica mais sólida. Ainda assim, e de latitude Sul, podendo, aparentemente, identi-
tanto quanto sabemos, os pilotos eram as mais ficar-se com a actual baía de Lucira Grande (13º
das vezes criticados pelos seus saberes e práticas 52’ S), na costa de Angola.
mal fundamentados, bem como relativamente Não existindo qualquer referência a esta an-
à forma como no mar, face aos indícios e infor- gra na cartografia precedente nem posterior,
mações recolhidas, procediam à determinação tudo indica que o seu reconhecimento possa ter
da posição do navio, tanto no que concerne à sido levado a cabo pouco tempo antes da elabo-
manipulação dos próprios instrumentos de na- ração desta carta, que, como se sabe, incluiu a
vegação, como por via dos muitos sinais em que mais recente informação relativa às viagens de
faziam fé, ou erradamente interpretavam: exploração efectuadas pelos navegadores por-
«[…] e se então se lhes encobrir o sol, como muitas tugueses no Atlântico Sul, nomeadamente na
vezes acontece, não podem saber onde estão senão por costa brasileira. Tal significa que João de Lisboa
sua estimação, que é bem fraca; pois houve entre eles pode por esta altura ter estado envolvido nal-
quem foi doze vezes à Índia e a[o] cabo deste tempo guma expedição visando um melhor conheci-
fez a conta do meio-dia às avessas […]» . 1 mento desta zona da costa africana, presumivel-
ou, A angra de João de Lisboa no planisfério dito de mente durante os anos de 1500-1501. Embora
Cantino (c. 1502).
«Este dia, a [h]oras de maior altura, tomei o sol, e reconheçamos a fragilidade da argumentação,
leuantauasse sobre [h]orizonte 63 graos; a declinação No entanto, o silêncio de todas as fontes este simples facto leva-nos, desde logo, e na au-
deste dia era 21 graos 1/4, do que se segue estarmos nacionais coevas, cuja informação é aparen- sência de melhor prova, a retirar o piloto das ar-
em altura de 5 graos 3/4 pera a parte do sul; este mes- temente mais consistente e completa, não nos madas de Pedro Álvares Cabral e João da Nova,
mo sol tomou o mestre e o calafate e dous marinhei- permite, sem as maiores reservas, conferir gran- que naqueles anos partiram para a Índia.
ros, sem desviarem cousa alguma; o piloto na maior des probabilidades a esta hipótese. Segundo F. A. Varnhagen, citando o Resu-
altura tomou do sol ao horizonte 61 graos, assi que mo histórico chronologico e politico do desco-
Arquivo CTEN António Gonçalves
dous graos foi differente de nós, que he cousa forte e brimento da América de Alexandre Gusmão,
pera não crer» . 2 João de Lisboa participou na expedição à costa
ou ainda, brasileira capitaneada por Gonçalo Coelho ,
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«Porque o juizo e estimatiua dos homens do mar he em 1502-1503.
tamanha parte da nauegação, que as maes das vezes Em qualquer dos casos, e face à ausência de
fiqua a cousa nestes seus estormentos, assi no andar testemunho mais abalizado, aquilo que pode-
da nao como conhecimento e vista das terras, quis assi mos assumir claramente e sem quaisquer re-
[h]oje, como alguns outros dias, meter a mão em seu ceios, dados os inúmeros vestígios que o susten-
engenho, e saber suas openiões açerqua do que podião tam, é o facto de João de Lisboa ter com grande
andar as naos em cada singradura, nam tomando o probabilidade participado nalgumas das expedi-
sol; e acheyos tão differentes […] de tal maneira, que ções de reconhecimento e exploração do exten-
a singradura sobre que fazia o tal exame, huns me so litoral brasileiro. Esta nossa suspeita é corro-
dezião que podia andar a nao 30 legoas, outros 60, borada pelo facto de em várias cartas do século
outros 40, outros vinhão com tamanhos desuairos, e XVI – nomeadamente nas que se encontram nos
querião-nos prouar por tão fracas considerações, que atlas de Lázaro Luís, Fernão Vaz Dourado e in-
foy cousa espantosa; e este exame foy feito tomando clusivamente em duas cartas do atlas incluído
o pareçer do piloto, mestre e outros homens do mar no códice denominado Livro de Marinharia de
muy praticos e antigos» . 3 João de Lisboa –, se encontrar referenciado, na
Considerando verosímil a época que ante- costa norte do Brasil, na latitude dos 3º Sul, um
riormente apontámos para o seu nascimento, rio com o seu nome. O que, convenhamos, re-
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somos levados a concluir que à data da reali- força em muito esta nossa convicção .
zação da primeira viagem de Vasco da Gama à A simples indicação da existência deste to-
Índia (1497-1499), João de Lisboa poderia estar O rio João de Lisboa numa das cartas de um atlas de pónimo na costa norte do Brasil, leva-nos for-
Fernão Vaz Dourado (c. 1576).
na casa dos 25-30 anos, e seria já, por essa al- çosamente a dar crédito à probabilidade desta
tura, um bom piloto, podendo, eventualmen- Apesar de alguns historiadores haverem informação ter sido recolhida pela armada que
te, ter participado na referida expedição. Não também colocado João de Lisboa na armada explorou essas paragens. O que nos impele a
obstante a parca informação nominal acerca de de Pedro Álvares Cabral, não encontrámos o embarcar João de Lisboa num dos navios da se-
quantos seguiram nesta primeira armada para o mínimo indício que nos permita desde já ad- gunda expedição capitaneada por Gonçalo Co-
Oriente, e na qual não aparece o nosso piloto, mitir tal facto. elho, aquela que explorou esta parte da costa
REVISTA DA ARMADA U JUNHO 2008 11