Page 194 - Revista da Armada
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norte do Brasil, a qual terá descoberto e bapti-  Cão, que subiu o rio Congo até Ielala. De resto,  para João de Lisboa. Dada a fase ainda embrio-
         zado o rio com o nome do piloto.   como é sabido, o seu nome foi um dos que fi-  nária em que se encontravam as viagens que
           Corroborado pela documentação, a 9 de  cou gravado na célebre pedra que se encontra  faziam a ligação de Lisboa com o Oriente, tal
         Março de 1506 João de Lisboa partiria para  no actual rio Zaire, e da qual o Museu de Ma-  pressuposto obriga-nos a embarcar Pero Anes
         a Índia como piloto na armada de Tristão da  rinha possui uma réplica:  em pelo menos duas das três viagens realiza-
         Cunha, a bordo da nau capitânia São Tiago.  «Aqy chegaram os nauios do esclarecydo Rey dom  das até então.
         Chegaria em Dezembro desse mesmo ano  Joam ho segº. de portugall – dº caão [Diogo Cão] –   Coerentemente, pelas nossas contas, a via-
         a Moçambique, fazendo posteriormente es-  pº añs [Pero Anes] – pº da costa [Pero da Costa]».  gem de 1506 terá sido talvez a segunda ou
         cala na ilha de S. Lourenço, donde regressou   De acordo com a evolução das respectivas  terceira participação de João de Lisboa numa
         de novo a Moçambique. Seguiu depois para  carreiras como pilotos, parece-nos evidente  armada da carreira da Índia. E logo na qualida-
         Socotorá, onde no mês de Abril de 1507 se  que Pero Anes seria mais velho do que João  de de piloto da «nau capitânia», onde seguia
         deu a tomada da ilha pelos homens de Tris-  de Lisboa. Além disso, é nomeado «patrão da  Afonso de Albuquerque, prestes a assumir as
         tão da Cunha, com a consequente a expulsão  navegação da Índia», em 18 de Fevereiro de  funções de vice-rei.
         dos mouros. Depois deste episódio, a arma-  1503, ou seja, dezasseis anos antes de João de   Em nosso entender, embora a documenta-
         da navegou então rumo à Índia, alcançando  Lisboa atingir o mesmo cargo, como veremos  ção existente não o ateste, o facto é que João
         Cananor em Agosto, seguindo-se a escala em  mais adiante,             de Lisboa para merecer tal distinção em 1506,
         Cochim, onde o vice-rei Francisco de                                       seria seguramente por essa altura um
         Almeida recebeu o capitão-mor.                                             dos mais reconhecidos e experientes
           Em nossa opinião, talvez tenha sido                                     Imagens Starry Night  pilotos da carreira. Para tal, contaria no
         por ocasião desta estadia em Cochim,                                       seu curriculum com um mínimo de duas
         em finais de 1507, o mais tardar duran-                                     viagens à Índia. É que de outra forma,
         te os primeiros meses de 1508, que João                                    estamos certos, não seria possível deter
         de Lisboa efectuou, na companhia de                                        o necessário traquejo, de forma a estar
         Pero Anes, as observações que alega no                                     à altura das dificuldades e responsabili-
         capítulo quinto do seu Tratado da agu-                                     dades inerentes ao desempenho de tão
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         lha de marear .                                                            exigente função.
         «[…] o qual por muitas vezes Pere Anes que                                   Se admitirmos que em 1500-1501 te-
         deus tẽ e eu espremẽtamos muitas vezes cõ                                  nha participado na mencionada explo-
         ho norte e achamos estamdo ẽ parte que bẽ                                  ração da costa ocidental africana e que
         vimos ambos dos ditos synaes estã[o] ẽ hũa                                 em 1502-1503 possa ter estado envol-
                                                                                                              17
         linha cõ os pollos do mũdo isto por hũa agulha                             vido na exploração da costa brasileira ,
         estãdo Cochim e por este cruzeiro ser o mais                               como as poucas informações apresen-
         manifesto synall dos naveguamtes […]».                                     tadas parecem indiciar, restam-nos ape-
           Convictos que estamos de ter sido por   Imagens do céu em Cochim no dia 16 de Dezembro de 1508, pelas   nas as armadas de Afonso de Albuquer-
         esta ocasião que os pilotos procederam   6h40 da manhã. A Norte, (imagem da esquerda) vê-se claramente a   que (1503) e Lopo Soares de Albergaria
                                        estrela Polar, no extremo inferior da constelação da Ursa Menor. Indi-
         em conjunto às mencionadas experi-  cando o Sul (imagem da direita) encontra-se a constelação do Cruzei-  (1504), para que possa ter feito a sua se-
         ências, tivemos o cuidado de investigar   ro do Sul no momento da passagem meridiana superior, determinado   gunda viagem à Índia, antes da que ini-
         qual seria o aspecto do céu nocturno em   pela posição vertical das estrelas Gacrux e Acrux, que definem o pé   ciou em 1506. Tal facto pressupõe partir
         Cochim, por essa altura .      da cruz. Neste dia o Sol nasceu em Cochim às 7h04.  do princípio, que admitimos carecer de
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           De facto, somente a partir do dia 16 de De-  «Dom manuell etc. A quamtos esta nosa carta virem  melhor prova, que João de Lisboa tenha efecti-
         zembro desse ano seria possível  observar que  fazemos saber que avemdo respeito ao mujto seruiço  vamente seguido na primeira armada de Vasco
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         «ambos dos ditos synaes» – a estrela polar e o Cru-  que Pero Anes nosso piloto morador nesta çidade nos  da Gama (1497-1499), conforme insinuámos
         zeiro do Sul em passagem meridiana  –, «estã ẽ  tem ffecto nos descobrjmentos e armadas nosas asy  inicialmente ao abrigo das maiores reservas,
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         hũa linha cõ os pollos do mũdo».   da India como doutras terras e ilhas de que o emcar-  provavelmente na companhia do seu amigo e
           Segundo Frazão de Vasconcelos, o piloto Pero  reguamos de pijlotto em a qual cousa deu ssempre se  possível mestre, Pero Anes.
         Anes terá sido morto num combate travado na  sij booa conta e recado como homem que de sua arte   Embora não mencionando nomes, julgamos
         barra de Chaul, em Janeiro de 1508 , na mes-  tem muijta pratica e saber querendolhe fazer graça e  que o testemunho de Duarte Pacheco, quan-
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         ma ocasião em que D. Lourenço de Almeida  merçee temos por bem e o damos ora daqij em diamte  do se refere à viagem de Vasco da Gama, pa-
         também aí perdeu a vida . Isto mesmo pode  por nosso patram da dita nauegaçam da India e mar  rece conter algumas achegas implícitas a este
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         ser inferido em João de Barros:    houceano asij e na maneira e com aquelles preujlegios  respeito:
         «D. Lourenço, vendo que a nau de Pero Barreto com  liberdades e franquezas […]» .  «E assi foram mandados nesta viagem os principais
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         as outras se iam saindo, e o rebocar da galé não sur-  pelo qual D. Manuel, dez dias depois, em  pilotos e mareantes e mais sabedores na arte da ma-
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         dia avante, mandou Pedreanes, o Granchino, pilôto  28 de Fevereiro desse ano, mandava atribuir-  rinharia, que nesta pátria acharam […]» .
         da nau, que fôsse ver o que os detinha […] Finalmente  lhe 4.000 reais de tença, nomeando-o «patrão   Na sequência do seu regresso a Portugal em
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         êles se recolheram, e os da nau de D. Lourenço já de-  do mar oceano»:  Abril de 1509 , surge o documento que nos dá
         funto quási todos o seguiram; ca, de cento e tantos que  «D. Manuell per graça de Deus, […] mãdamosvos que  conta do pagamento que lhe foi feito pelos ser-
         eram sòmente foram cativos dezenove […]» .  do remdymẽto da dita casa, deste anno presẽte de mill  viços prestados. Assume particular relevância
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           Na transcrição anteriormente apresentada,  e b e iij. Dees a Pedranes, piloto, patrã do mar aucia-  o facto de lhe ser atribuída a função de mes-
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         João de Lisboa profere, talvez denotando uma  no, quatro mil r que lhe mamdamos e o dito anno de  tre duma nau. Dada a ausência de elementos
         certa estima ou saudade, «pere anes que deus tẽ»,  nos hadaver temça» .  contidos noutras fontes que corroborem este
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         numa alusão que julgamos ser sinónimo daque-  De salientar o facto de também não exis-  parecer, vemo-nos forçados a não lhe atribuir
         le piloto haver já falecido. Somos por isso com-  tir a respeito de Pero Anes qualquer referên-  grande valor, preferindo assumir que tal facto
         pelidos a depreender, que as mencionadas ex-  cia à sua participação nas armadas de Vasco  possa eventualmente indiciar uma desatenção
         periências e observações em «muitas vezes» só  da Gama (1497-1499), Pedro Álvares Cabral  por parte do escrivão, para quem as funções
         podem ter decorrido entre o dia 16 de Dezem-  (1500-1501) ou João da Nova (1501-1502).  de mestre ou piloto poderiam até ser sinóni-
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         bro de 1507 e o início de Março de 1508, altura  Ainda assim, estamos convictos de que a sua  mos , ou ainda, situação que de resto nos pa-
         em que Pero Anes supostamente faleceu.  nomeação para o referido posto, obrigaria a  rece bem mais provável, que João de Lisboa
           Recordamos, no entanto, que Pero Anes havia  que tivesse participado em pelo menos duas  tenha acumulado, de facto, ambas as funções,
         sido piloto da expedição capitaneada por Diogo  viagens à Índia, a exemplo do que defendemos  o que a avaliar por outros testemunhos coevos,
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