Page 348 - Revista da Armada
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A MARINHA DE D. JOÃO III (39)
Garcia de Sá no governo da Índia
Garcia de Sá no governo da Índia
a última Revista, ao analisar eventu- nio, daquelas que não desperdiçaram opor- vastíssima experiência do Oriente, tempera-
ais problemas da vida portuguesa no tunidades e souberam avançar no momento da por um espírito vigoroso e sensato, bem à
NOriente que, eventualmente pertur- próprio, e das que compreenderam que era o medida dos desafios que nessa altura se colo-
baram a possibilidade de êxito da conquista momento de tudo reconsiderar e reordenar à cavam aos portugueses. Chegara há quaren-
de Aden por D. Álvaro de Castro, referi a hi- medida dos meios disponíveis, como foi o caso ta anos atrás, interrompendo essa sua longa
pótese levantada por Vitorino Magalhães Go- do rei D. João III. peregrinação com uma pequena estadia em
dinho de que haveria falta de vontade para O momento da morte de D. João de Castro, Portugal, durante a década de vinte. Não se
concretizar essa conquista. No seu entender, depois da pesada campanha de Diu e do insu- sabe ao certo quando veio (depois de 1521)
interesses económicos menos claros estariam cesso na ocupação de Aden, é paradigmático mas sabe-se que regressou à Índia na arma-
interessados em manter um lucrativo fluxo e revela o progressivo esgotamento dos meios da de Nuno da Cunha, no ano de 1528. Foi
de contrabando através do Mar Ver- duas vezes capitão de Malaca e uma
melho, que ficaria altamente preju- de Baçaim, onde presidiu à constru-
dicado com um efectivo domínio ção da fortaleza, e conhecia amiúde
da entrada do Estreito. Magalhães todos os meandros do Império Por-
Godinho detectou esses interesses e tuguês Oriental, desde as longínquas
é legítima a sua observação, mas há Molucas até Ormuz e Aden, tendo
uma perspectiva estratégica naval presenciado quase todas as grandes
que também deve ser considerada e crises, como foram os cercos de Diu.
que tem escapado à observação dos Diz-nos Diogo do Couto que uma
historiadores de referência. das primeiras medidas tomadas foi
Já foi visto como a decisão de a preparação da Armada com que
D. João III, de mandar retirar os por- contava sair logo que fosse possível.
tugueses de algumas fortalezas do Sabemos hoje que a ele se deve a or-
Norte de África, decorria de uma ganização de um extenso códice em
análise realista das dificuldades por- 25 capítulos, de vários autores que
tuguesas para manter em aberto todas compilaram informações sobre as-
as frentes de conflito que a expansão suntos diversos relacionados com os
tinha lançado. Parece óbvia, neste sen- vastos interesses do Império. O ma-
tido, a diligência e o sentido de gover- nuscrito – onde é possível identificar
no manifestada por D. João III, toman- três capítulos escritos por S. Francisco
do consciência dos problemas que se Xavier – pertence à Biblioteca Munici-
podem reconhecer na Índia, à data da pal de Elvas, e foi estudado em 1960
morte de D. João de Castro. Eviden- por Almeida Calado, que o publicou
temente – e já o temos dito – que no no Boletim da Biblioteca da Universidade
século XVI a Estratégia não é uma dis- de Coimbra, com o expressivo título de
ciplina estruturada com a clareza que “Cousas da Índia e do Japão”. Pode-
lhe reconhecemos nos séculos XIX ou mos interpretá-lo como um detalha-
XX, mas os actos de governação obe- do relatório encomendado a vários
decem sempre a uma intenção políti- autores pelo próprio governador. E
ca e à delineação de um plano que é, importa salientar que esse governa-
evidentemente, um plano estratégi- Garcia de Sá: Governador da Índia (1548-1549) – Códice de Lisuarte de Abreu. dor dominava muito bem todos os
co. Não podemos, contudo, retirar estes “pla- nacionais, evidenciando a “exaustão estratégi- assuntos orientais (talvez mais do que alguns
nos” do contexto em que se inseriam, e julgá- ca” portuguesa no Oriente. Num trabalho iné- que escreveram os textos), parecendo-me que
-los com a mentalidade e a maneira de pensar dito, realizado no âmbito de um mestrado de corresponde a um esforço de síntese de ideias,
do século XX e XXI. Melhor dito seria que não Estratégia, o Comandante Duarte Ramos de- muito próprio de um momento de reflexão e
podemos esquecer que foram delineados an- senvolveu esta ideia, atribuindo esta exaustão de balanço: na tentativa de compreender em
tes do pensamento rigoroso de Descartes e da à política expansionista de Afonso de Albu- que ponto estavam os negócios portugueses –
filosofia das luzes, mas temos de reconhecer querque que, na sua interpretação, ultrapassou e é de salientar o incremento das relações com
que eram planos e que decorriam de uma in- os limites das capacidades navais portuguesas. o Japão – para gerir os esforços onde eles se
tenção política. Sabemos também que é a es- Não acho que a causa possa ser encontrada revelavam mais importantes e de maior inte-
tratégia que determina os meios e o desajuste nessa fase – tanto mais que Albuquerque é um resse para a coroa. Garcia de Sá governou du-
entre uma coisa e outra pode ser desastroso. agente da multifacetada visão manuelina do rante cerca de um ano. Um ano em que enviou
Muitas vezes esse desajuste resulta apenas de Império – mas não há dúvida que a “exaustão uma esquadra a Ormuz, em que comandou
uma incompreensão da decorrência dos factos estratégica” se sente com muita nitidez no final uma expedição ao Golfo de Cambaia e em que
no tempo, levando a que se desperdicem opor- do governo de D. João de Castro. os portugueses participaram numa expedição
tunidades ou a que se desencadeiem acções Aberto o cofre das “sucessões” no próprio militar de apoio ao reino do Pegu contra o
antes de ter os meios necessários para as levar dia da morte do Vice-Rei, recaía a primeira es- Sião. Rezam as crónicas que construiu vários
a bom termo. Enfim, é um processo complexo colha em D. João de Mascarenhas, que partira navios, e deixou os armazéns providos do que
que, no século XVI, contava com pouco mais para o reino depois da vitória de Diu, e a se- era necessário para a paz e para a guerra.
do que a intuição de um ou outro governante gunda em D. Jorge Tello que, também, já não Z
que a posteridade classificou como de génio. estava na Índia. Aberta a terceira, indicava o J. Semedo de Matos
E Portugal teve algumas destas figuras de gé- nome de Garcia de Sá, um homem com uma CFR FZ
22 NOVEMBRO 2008 U REVISTA DA ARMADA