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A MARINHA DE D. JOÃO III (39)



                    Garcia de Sá no governo da Índia
                     Garcia de Sá no governo da Índia

               a última Revista, ao analisar eventu-  nio, daquelas que não desperdiçaram opor-  vastíssima experiência do Oriente, tempera-
               ais problemas da vida portuguesa no  tunidades e souberam avançar no momento  da por um espírito vigoroso e sensato, bem à
         NOriente que, eventualmente pertur-  próprio, e das que compreenderam que era o  medida dos desafios que nessa altura se colo-
         baram a possibilidade de êxito da conquista  momento de tudo reconsiderar e reordenar à  cavam aos portugueses. Chegara há quaren-
         de Aden por D. Álvaro de Castro, referi a hi-  medida dos meios disponíveis, como foi o caso  ta anos atrás, interrompendo essa sua longa
         pótese levantada por Vitorino Magalhães Go-  do rei D. João III.      peregrinação com uma pequena estadia em
         dinho de que haveria falta de vontade para   O momento da morte de D. João de Castro,  Portugal, durante a década de vinte. Não se
         concretizar essa conquista. No seu entender,  depois da pesada campanha de Diu e do insu-  sabe ao certo quando veio (depois de 1521)
         interesses económicos menos claros estariam  cesso na ocupação de Aden, é paradigmático  mas sabe-se que regressou à Índia na arma-
         interessados em manter um lucrativo fluxo  e revela o progressivo esgotamento dos meios  da de Nuno da Cunha, no ano de 1528. Foi
         de contrabando através do Mar Ver-                                          duas vezes capitão de Malaca e uma
         melho, que ficaria altamente preju-                                          de Baçaim, onde presidiu à constru-
         dicado com um efectivo domínio                                              ção da fortaleza, e conhecia amiúde
         da entrada do Estreito. Magalhães                                           todos os meandros do Império Por-
         Godinho detectou esses interesses e                                         tuguês Oriental, desde as longínquas
         é legítima a sua observação, mas há                                         Molucas até Ormuz e Aden, tendo
         uma perspectiva estratégica naval                                           presenciado quase todas as grandes
         que também deve ser considerada e                                           crises, como foram os cercos de Diu.
         que tem escapado à observação dos                                           Diz-nos Diogo do Couto que uma
         historiadores de referência.                                                das primeiras medidas tomadas foi
           Já foi visto como a decisão de                                            a preparação da Armada com que
         D. João III, de mandar retirar os por-                                      contava sair logo que fosse possível.
         tugueses de algumas fortalezas do                                           Sabemos hoje que a ele se deve a or-
         Norte de África, decorria de uma                                            ganização de um extenso códice em
         análise realista das dificuldades por-                                       25 capítulos, de vários autores que
         tuguesas para manter em aberto todas                                        compilaram informações sobre as-
         as frentes de conflito que a expansão                                        suntos diversos relacionados com os
         tinha lançado. Parece óbvia, neste sen-                                     vastos interesses do Império. O ma-
         tido, a diligência e o sentido de gover-                                    nuscrito – onde é possível identificar
         no manifestada por D. João III, toman-                                      três capítulos escritos por S. Francisco
         do consciência dos problemas que se                                         Xavier – pertence à Biblioteca Munici-
         podem reconhecer na Índia, à data da                                        pal de Elvas, e foi estudado em 1960
         morte de D. João de Castro. Eviden-                                         por Almeida Calado, que o publicou
         temente – e já o temos dito – que no                                        no Boletim da Biblioteca da Universidade
         século XVI a Estratégia não é uma dis-                                      de Coimbra, com o expressivo título de
         ciplina estruturada com a clareza que                                       “Cousas da Índia e do Japão”. Pode-
         lhe reconhecemos nos séculos XIX ou                                         mos interpretá-lo como um detalha-
         XX, mas os actos de governação obe-                                         do relatório encomendado a vários
         decem sempre a uma intenção políti-                                         autores pelo próprio governador. E
         ca e à delineação de um plano que é,                                        importa salientar que esse governa-
         evidentemente, um plano estratégi-  Garcia de Sá: Governador da Índia (1548-1549) – Códice de Lisuarte de Abreu.  dor dominava muito bem todos os
         co. Não podemos, contudo, retirar estes “pla-  nacionais, evidenciando a “exaustão estratégi-  assuntos orientais (talvez mais do que alguns
         nos” do contexto em que se inseriam, e julgá-  ca” portuguesa no Oriente. Num trabalho iné-  que escreveram os textos), parecendo-me que
         -los com a mentalidade e a maneira de pensar  dito, realizado no âmbito de um mestrado de  corresponde a um esforço de síntese de ideias,
         do século XX e XXI. Melhor dito seria que não  Estratégia, o Comandante Duarte Ramos de-  muito próprio de um momento de reflexão e
         podemos esquecer que foram delineados an-  senvolveu esta ideia, atribuindo esta exaustão  de balanço: na tentativa de compreender em
         tes do pensamento rigoroso de Descartes e da  à política expansionista de Afonso de Albu-  que ponto estavam os negócios portugueses –
         filosofia das luzes, mas temos de reconhecer  querque que, na sua interpretação, ultrapassou  e é de salientar o incremento das relações com
         que eram planos e que decorriam de uma in-  os limites das capacidades navais portuguesas.  o Japão – para gerir os esforços onde eles se
         tenção política. Sabemos também que é a es-  Não acho que a causa possa ser encontrada  revelavam mais importantes e de maior inte-
         tratégia que determina os meios e o desajuste  nessa fase – tanto mais que Albuquerque é um  resse para a coroa. Garcia de Sá governou du-
         entre uma coisa e outra pode ser desastroso.  agente da multifacetada visão manuelina do  rante cerca de um ano. Um ano em que enviou
         Muitas vezes esse desajuste resulta apenas de  Império – mas não há dúvida que a “exaustão  uma esquadra a Ormuz, em que comandou
         uma incompreensão da decorrência dos factos  estratégica” se sente com muita nitidez no final  uma expedição ao Golfo de Cambaia e em que
         no tempo, levando a que se desperdicem opor-  do governo de D. João de Castro.  os portugueses participaram numa expedição
         tunidades ou a que se desencadeiem acções   Aberto o cofre das “sucessões” no próprio  militar de apoio ao reino do Pegu contra o
         antes de ter os meios necessários para as levar  dia da morte do Vice-Rei, recaía a primeira es-  Sião. Rezam as crónicas que construiu vários
         a bom termo. Enfim, é um processo complexo  colha em D. João de Mascarenhas, que partira  navios, e deixou os armazéns providos do que
         que, no século XVI, contava com pouco mais  para o reino depois da vitória de Diu, e a se-  era necessário para a paz e para a guerra.
         do que a intuição de um ou outro governante  gunda em D. Jorge Tello que, também, já não              Z
         que a posteridade classificou como de génio.  estava na Índia. Aberta a terceira, indicava o   J. Semedo de Matos
         E Portugal teve algumas destas figuras de gé-  nome de Garcia de Sá, um homem com uma              CFR FZ

         22  NOVEMBRO 2008 U REVISTA DA ARMADA
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