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UMA CIDADE SOBRE O ESTREITO to permitia o abrigo de uma quantidade voltava-se a tempo de vender aos chine-
significativa de navios, oferecendo-lhes ses as drogas de Banda e das Molucas,
O Mundo Oriental alcançado pelos boas condições de comércio e reabasteci- bem como a já dita pimenta. Malaca era
portugueses em 1498, quando Vasco da mento. A cidade cresceu, pois, como uma o local certo para o encontro de quem
Gama chegou a Calecut, era multiface- entidade prestadora de serviços, que não vinha nas rotas da China, da Índia e das
tado na sua própria homogeneidade, dispunha de espaço vital para sustentar ilhas do sul, permitindo o comércio e o
reservando espaços próprios que comu- a sua população, mas sobrevivia à custa regresso a casa sem grandes delongas. A
nicavam por vias muito estreitas, cujo das taxas alfandegárias com que compra- cidade dispunha de armazéns e agentes
controlo assumia um valor estratégico va quase todos os bens necessários para a comerciais, e estava organizada para ser-
extraordinário. O Oceano Índico era o sua sobrevivência e para o apoio aos navios. vir este movimento marítimo, retirando
elemento central que unia os po-
vos desde a África Oriental ao daí os seus proveitos próprios.
limiar do Mar da China, através Diz a lenda que tinha sido
das rotas marítimas, separando-
-os, simultaneamente, e protegen- fundada por Paramjçura, rei de
do as suas singularidades étnicas Palimbão, vassalo de um rei de
e culturais pela distância. Neste Java. Procurando libertar-se desta
extensa superfície marítima circu- tutela opressiva provocou a cólera
lava um formigueiro de navios de do seu soberano e foi atacado por
diferentes portes, transportando ele. Refugiou-se nos juncos e ou-
mercadorias de uns portos para tras embarcações que tinha no rio,
outros, ao ritmo cadenciado das mas foi obrigado a retirar para Sin-
monções asiáticas. Facilmente gapura, cujo governador lhe deu
distinguimos duas grandes re- abrigo e protecção. Não honrou da
giões: uma delas compreendendo melhor forma essa hospitalidade
o Índico Ocidental e central, entre e, na primeira oportunidade, ma-
o continente africano e a linha da tou o anfitrião, apoderando-se do
Península Malaia e Samatra; e a seu território. Sucede porém que
outra, a leste desta mesma linha, o senhor de Singapura era genro
compreendendo o Arquipélago do poderoso rei de Sião que veio
da Insulíndia, o Mar da China e tirar desforra da afronta sofrida,
as costas e ilhas que, para norte, se obrigando Paramjçura a fugir para
prolongam até ao Japão. A estes o sertão, e a procurar abrigo junto
dois espaços – com as suas gen- do rio Muar. Diz-nos o boticário
tes, costumes, culturas e religiões Tomé Pires, que recolheu o teste-
– podemos chamar de Mundo munho desta história em Malaca
Índico, que o historiador francês cerca de um século depois, que por
Denis Lombard definiu, a traço ali viveu durante seis anos “& pes-
grosso, como uma estrutura de cavam & as vezes furtavã & rouba-
dois pólos centrípetos, na Índia e vam Champanas que vinham to-
na China, entre os quais circulam Afonso de Albuquerque mar água doce”. E acrescenta que,
os múltiplos transportadores de Livro de Lisuarte de Abreu quando da fuga de Palimbão, Pa-
mercadorias. Os dois impérios ramjçura teve a ajuda de “celates”,
têm configuração e estabilidade diver- Acresce ainda que o sistema de mon- homens que viviam da pirataria
sa, mas assemelham-se na condição de ções asiático favorecia aquela posição nos estreitos e espaços confinados entre a
consumidores e transformadores, clien- como ponto de encontro de diferentes miríade de ilhas e ilhéus daquela região.
tes de um comércio marítimo onde não rotas. Os mercadores chineses vinham As lendas são o produto da imagi-
participam. As condições geográficas e em Abril para regressarem em Maio. nação humana, transformadas ao longo
a relação com uma potência dominante Os seus produtos tinham como destino dos tempos, de acordo com os medos,
definem assim as duas áreas físicas, cada privilegiado o Ocidente, pretendendo interesses e jogos de poder, muitas vezes
uma com a sua dinâmica própria, mas comprar a pimenta de Java ou Achém compondo imagens políticas, num mun-
unidas pelo Estreito de Malaca, por onde que chegava por essa altura. Da Índia do onde o poder das figuras se constrói
circulam as mercadorias que trocam entre si. partia-se em Abril ou Setembro, de forma com histórias que correm de boca em
Estes factores determinariam, só por que as suas fazendas estavam em Malaca boca. Os “celates” são os senhores dos
si, o valor estratégico do estreito corredor, quando lá chegavam os chineses ou ou- estreitos (a palavra selat quer dizer, em
definido entre a Península Malaia e a ilha tros comerciantes vindos do norte. Para o língua malaia, estreito) parecendo evi-
de Samatra, onde todo o fluxo marítimo sul, em direcção ao Arquipélago, saía-se dente que a aliança com eles foi a base do
teria de passar. Compreendendo-se uma em Dezembro ou Janeiro, mas as merca- poder de Paramjçura e dos seus descen-
parte da importância que tinha a cidade dorias chineses não se destinavam a esse dentes, ao longo de todo o século XV. Ou
de Malaca, na medida em que o seu por- espaço de menor exuberância. Contudo, seja, o hospitaleiro soberano, prestador
de apoio ao comércio marítimo, também
21REVISTA DA ARMADA • AGOSTO 2011