Page 17 - Revista da Armada
P. 17

A MARINHA DE D. SEBASTIÃO (29)

           Os fumos do Monomotapa

Diz a Bíblia, no primeiro Livro dos Reis,   ocasional, normalmente terminavam em de-              (ou conjunto de acções) que não conseguimos
         que Salomão construiu navios, num  sastrosos fracassos, quase sempre trágicos para       saber se seria uma verdadeira ofensiva ou se
         porto do Mar Vermelho, e, com ma-  todos os participantes, fosse pelos maus resul-       era apenas uma forma de estabelecer uma re-
rinheiros fenícios que lhe enviou o rei de Tiro, tados da guerra, fosse por obra das inevitáveis lação vantajosa, com base na força militar que
navegaram até Ofir, de onde trouxeram 14 to- doenças. E a expedição de 1569 ao Monomo- oacompanhava.Apresençadasarmasdefogo
neladas de ouro. E, mais adiante, acrescenta tapa teve todos os ingredientes desta mistura e sobretudo das peças de artilharia impressio-
que o rei mantinha permanentemente navios fatal: recrutamento incerto, travessia intermi- naria, certamente, os inimigos locais, facilitan-
nomar,cujasviagensdemoravamcercadetrês nável, hesitação constante, muita indolência e do esse plano, mas as esperas longas, em lo-
anos, num vaivém constante que rendia quase inadequabilidade.                                     cais infestados pela malária, dizimavam mais
vinte toneladas do glorioso metal, cada ano.A Vimos que o navio de Francisco Barreto que as zagaias indígenas. Só em Julho de 1572
linguagem bíblica é, naturalmente, alegórica chegou a Moçambique com quase um ano de aquele exército entrou em combate, num pe-
de um reino onde quis Deus que imperasse a atraso, mas, na hora em que devia ter avança- queno recontro, cujos resultados não são bem
sabedoria e frutificasse a riqueza, e a ideia de do para o seu objectivo, preferiu seguir com conhecidos,masqueterminounumacordode
umOfirinesgotável,queoalimentavadeouro, toda a armada para a costa de Melinde, por paz e submissão do rei Mongas, um aliado do
cruzou os tempos e teve uma enorme                                                                               Monomotapa. Poucos dias depois re-
intensidade no Portugal quinhentis-                                                                              cuou outra vez para S. Marçal e Sena,
ta. No Índico se soube, desde muito                                                                              de onde Francisco Barreto se recolheu
cedo, que havia uma fonte de ouro no                                                                             a Moçambique, deixando no comando
sertão de Sofala, e a associação dessa                                                                           das tropas o mestre de campo, Vasco
fonte com o salomónico Ofir foi qua-                                                                             Fernandes Homem.
se imediata. Compreende-se, por isso,                                                                            Barreto tinha competências de go-
o entusiasmo de D. Sebastião na em-                                                                              verno sobre o espaço de influência
presa de conquista do Monomotapa                                                                                 portuguesa em toda a costa oriental
e a forma como ela fez sonhar muitos                                                                             africana, justificando-se por isso esta
aventureiros, provenientes de todas                                                                              necessidade de não ficar no sertão,
as classes sociais. Segundo as fontes,                                                                           apesar da campanha não ter termina-
o recrutamento de tropas foi empol-                                                                              do. Não escapou, contudo, às suges-
gante com gente a esconder-se nos                                                                                tões de que fugia do interior, eviden-
porões dos navios, sabendo que não                                                                               ciadas pelos relatos da época. Só em
teriam maior castigo para o embar-                                                                               Maio de 1573, voltou para Sena mas
que clandestino que a obrigatorieda-                                                                             já estava muito doente e debilitado,
de de combater pela própria fortuna                                                                              falecendo pouco depois.
além-mar.                                                                                                        Fernandes Homem tomou o co-
Quer isto dizer que não houve difi-                                                                              mando de um exército que já perdera
culdade em encontrar quem quisesse                                                                               a maior parte dos seus efectivos, quase
participar na aventura, podendo ima-                                                                             todos por doenças e males estranhos
ginar-se a horda de deserdados a em-                                                                             ao combate. Retirou-se para Sofala, em
barcar desordenadamente, buscando                                                                                1574, onde encontrou Diogo do Couto,
melhor sorte que a que encontravam                                                                               a quem contou com detalhe tudo o que
nas ruas de Lisboa. O problema é        Fragmento de um mapa do ATLAS DE FERNÃO VAZ DOURADO                      tinha ocorrido naqueles penosos cin-
que essa gente não se deixa controlar   (ci. 1570) pe­ rtencente à Huntington Library (San Marino, California):  co anos. O ofírico sonho português do
com facilidade, resistindo à discipli-  nele se pode ver a costa de Moçambique, com o rio Zambeze (Quama)        Monomotapa esfumava-se sem glória,
na das razões de guerra, sem nunca      que se supunha ter fonte comum com o Nilo.                               tomado pela inépcia ou (mais) pela fal-

se sentir vinculada a outra obrigação que não ondeandoumaisdeumano.Em1571,quando tadejeitoparaummodeloimperialquenãoes-
seja o sonho ou a necessidade que o fez partir. D. António de Noronha passou por ali para ir tava calhado para os portugueses. Conquistar
Como disse no número anterior, a nau capitâ- t­omarpossecomovice-reidaÍndia,encontrou- um longínquo reino produtor de ouro no pla-
nia arribou a S. Salvador da Baía e por lá ficou -o ainda hesitante em entrar no sertão: propu- nalto do Zimbabwe era algo parecido com o
durante seis meses: os homens vão a terra e, nha-se acompanhá-lo até Goa, com o pretexto projecto castelhano naAmérica do Sul. E o mo-
cansados que estão das agruras do mar, per- de pa­ rticipar numa campanha levada a cabo delo seduzira D. Sebastião, mas é evidente que
cebem depressa como se vive por ali, esprei- por D. Luís deAtaíde. É claro que não lho per- não se adequava à dimensão e à forma de pro-
tam outras fortunas, esgueiram-se pelas ruas mitiu D. António e teve de começar o que tar- ceder do povo que se construiu virado para o
e vielas – descobrem mulher, lar, aconchego – dava, mas, mesmo assim, com grandes delon- Atlântico,vocacionadoparaasrotasmarítimas,
e deixam-se ficar. Na hora da partida, faltam gas. Subiu o rio Zambeze (Cuama) até à vila paraodomíniopontualdeportosimportantese
quase metade dos efectivos e não há nenhuma de Sena e acometeu uma pequena povoação entrepostoscomerciais,eparaumadiplomacia
forma eficaz de os encontrar. O que se passou vizinha, onde construiu o forte de S. Marçal, de equilíbrios. A expedição ao Monomotapa é
naBaíapassava-seemtodooladoondeencon- prepa­rando-se para mais uma espera de oito o exemplo de um projecto desadequado, con-
trassem um pouco do calor que não tinham na meses. É difícil compreender o comportamen- denado ao fracasso.
capital do Império. Por isso, as expedições que to de D. Francisco Barreto, fora da ideia de que                                          

começavamcomumrecrutamentodesordena- temiaaentradapelaselvaatéaoMonomotapa,                                      J. Semedo de Matos
do de gente tomada apenas pelo fio da aven- e a construção do forte de S. Marçal confirma                                                 CFR FZ

tura, a que se seguiam longas viagens, onde uma estratégia que passava por permanecer N.R.
os navios se arrastavam em portos de escala em Sena e fazer ali a sua base para uma acção O autor não adota o novo acordo ortográfico.

                                                                                                                 REVISTA DA ARMADA • ABRIL 2012 17
   12   13   14   15   16   17   18   19   20   21   22