Page 8 - Revista da Armada
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REFLEXÃO ESTRATÉGICA						                                                                              2

                                                     A História

nos Estudos Estratégicos Militares
Os estudos estratégicos militares desti-
         nam-se a analisar e explicar o agre-          O poder mítico de certas versões dos factos        A exploração da informação histórica que
         gado do conhecimento e da conjec-           históricos deve ser considerado, porque exis-      não é narrativa mitológica tem grande utili-
tura humana sobre as relações internacionais         tem muitas reconstruções deliberadas das dis-      dade nos estudos estratégicos militares, por-
de conflito, de oposição e de competição             putas militares, tendo em vista produzir efeitos   que constitui a base da percepção do estra-
que recorrem ao uso das Forças Armadas,              motivacionais ou identitários nas pessoas. São     tegista militar sobre o presente, e serve para
bem como a evolução das motivações va-               exemplos disso os relatos em que, numa ba-         instruir a sua reflexão quanto ao futuro das
lorizadas, dos meios empregues e dos pro-            talha, todos se comportaram com bravura, os        Forças Armadas ao serviço do país. Por isso,
cessos adoptados naquelas disputas. Desses           planos de campanha foram seguidos à risca,         considero essencial usar a História, quer para
estudos devem resultar teorias, com validade         as intenções do comandante tiveram cumpri-         a formação académica e instrução dos mi-
e aceitação contextualizada, que se                  mento intencional e racional, ninguém teve         litares, quer para explorar a informação re-
destinam a estabelecer um conjunto                   medo e os que morreram patentearam sempre
ou sistema lógico de conceitos e mé-                 uma extraordinária coragem.                               sultante da participação indirecta nas
todos, sustentáveis e plausíveis, desti-                                                                       acções militares.
nados a edificar, estruturar e empregar                Estas versões míticas dos factos históricos são
as capacidades militares. Essas teorias              deliberadamente propagandeadas em várias                    A História é indispensável à formação
também devem reflectir a dinâmica in-                ocasiões e círculos sociais, porque fomentam o            académica e à instrução dos militares,
teractiva entre as disputas militares e              espírito de corpo, motivam as novas gerações e            porque além de encerrar o conheci-
as sociedades onde têm lugar.                        alimentam a alma nacional. Porém, também po-              mento da sociedade e da vida humana,
                                                     dem contribuir para abalar a auto-estima dos jo-          é um campo privilegiado onde se pode
  O saber necessário à realização dos                vens, quando estes, ao serem confrontados com             exercitar o raciocínio que as disputas
estudos estratégicos militares tem duas              a realidade da guerra, têm de lidar, de forma             militares exigem. Nestas circunstân-
componentes primaciais: uma teórica,                 inevitável, duradoura e intensa, com o medo,              cias, o estrategista militar deve encon-
adquirida pela formação académica                    o egoísmo e a covardia. Para além disso, as nar-          trar tempo para estudar a História, e esta
e pela instrução; outra prática, obtida              rativas mitológicas dos factos históricos, tendem         deve ser incluída nos currículos acadé-
pela participação directa e indirecta                a tornar-se a versão oficial dos acontecimentos,          micos de base de todos os militares.
nas acções militares. A primeira com-                encobrindo a realidade caótica, aterrorizante e
ponente (teórica) é insuficiente, por si             letal da guerra. Isto acontece, porque alguns au-           A História, quando considerada com
só, para as necessidades dos estudos                 tores tomam as fábulas pelos factos e deslocam-           a abrangência, profundidade e contex-
estratégicos militares, por estar estru-             -nas da sua função motivacional ou identitária,           tualização, também é relevante para
turada sobre o conteúdo das matérias                 para as edificar em História.                             explorar a informação resultante da
leccionadas e dos processos de treino                                                                          participação indirecta nas acções mi-
e exercício, ambos muito condiciona-                                                                           litares, porque estes fenómenos pole-
dos pela conjuntura e grandemente                                                                              mológicos têm muito mais em comum
influenciados pela tecnologia. A se-                                                                           entre si, do que com qualquer outra
gunda componente (prática) oferece                                                                             actividade humana. Na realidade, a
um campo de análise extraordinaria-                                                                            disputa, que é o elemento central das
mente mais vasto e variado, de maior                                                                           relações internacionais de conflito, de
alcance e assente em factos reais. Por                                                                         oposição e de competição militar, não
isso, incrementa largamente a infor-                                                                           mudou nas suas características essen-
mação necessária aos estudos estra-                                                                            ciais ao longo do tempo, naquilo que
tégicos militares. Com efeito, à experiência                                                                   se relaciona com os empreendimen-
directa vivida por cada um, acrescenta todas                                                                   tos e os raciocínios polemológicos. Por
as vivências indirectas das acções militares                                                                   isso, faz todo o sentido que os estrate-
que foram objecto de perenização histórica.                                                             gistas militares estudem os fenómenos po-
Nestas circunstâncias, como o estrategista                                                              lemológicos passados, para deles retirarem
militar, ao contrário da maioria dos profis-                                                            a experiência indirecta e, com inovação in-
sionais de outros ofícios, não tem possibi-                                                             telectual, poderem especular sobre o futuro
lidade de vivenciar, com regularidade e de                                                              daquelas relações estratégicas.
forma directa, toda a gama das acções do                                                                  É um facto que a História tem grande utili-
seu ofício, deve dar muita atenção e valor                                                              dade para a realização de estudos estratégicos
à História, da qual retira a experiência in-                                                            militares. Porém, o estrategista militar deve ter
directa necessária à realização dos estudos                                                             em conta que ela não serve para deduzir lições
estratégicos militares.                                                                                 prontas ou receitas destinadas a resolver pro-
                                                                                                        blemas estratégicos concretos e actuais. Ape-
  Para que estes estudos tenham validade                                                                nas ilumina o entendimento da realidade, as
científica, o estrategista militar deve estar aten-                                                     circunstâncias e os relacionamentos ligados
to, sobretudo, ao poder mítico de certas ver-                                                           às disputas militares.
sões dos factos históricos, de forma a explorar
conscientemente a informação histórica que                                                                                                                 
não é narrativa mitológica.                                                                                                      António Silva Ribeiro

                                                                                                                                                               CALM

                                                                                                        N.R.
                                                                                                        O autor não adota o novo acordo ortográfico.

8 MAIO 2012 • REVISTA DA ARMADA
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