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REVISTA DA ARMADA | 545


               26      PRINCÍPIOS DE DIREITO MARÍTIMO



                       OS CASE STUDY DOS NAVIOS “CHEM DAISY” E “BETANZOS”

                       PARTE I


                          o quadro funcional do exercício da Autoridade Marí  ma   com a ameaça de abandono do navio, o que veio a acontecer
                      NLocal (AML), e considerando a amplitude de situações que   mais tarde, bem como a negação de proceder à operação
                       envolvem a aplicação de mecanismos específi cos do Direito   de trasfega de combus  vel que exis  a a bordo e que estava
                       Marí  mo aplicado, assumem par  cular importância – como   programada ocorrer.
                       já analisámos e estudámos noutros trabalhos  – as questões   A questão do abandono – cuja confi guração jurídica ao
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                       rela  vas a transferência de propriedade de navios mercantes   abrigo da lei portuguesa é muito específi ca – foi aferida,
                       em situação de acontecimento de mar. Tal processo envolve,   mas o procedimento legalmente estabelecido não avançou
                       entre outros aspectos, mudança de registo e de bandeira, pri-  porquanto a Autoridade Tributária não recebeu o navio em
                       vilégios creditórios e sua prova, dívidas à tripulação, incum-  tal situação atendendo a que decorria a acção judicial para
                       primento de obrigações das tripulações, incumprimento   avaliação e decisão sobre os três pedidos de arresto do navio
                       de seguros marí  mos, questões de  security, mecanismos   entretanto instaurados (pelo agente C.M.J. Rieff  & Filhos,
                       preven  vos de eventual derrame poluente, obstáculos ao   pelos tripulantes e ainda pelo banco credor hipotecário). É
               DIREITO DO MAR E DIREITO MARÍTIMO
                       abastecimento de combus  vel, bem como os instrumentos   ú  l sublinhar que, ao abrigo da lei de Malta – lei da mari-
                       jurídicos e técnicos rela  vos à salvaguarda dos pressupostos   nha mercante, ar  go 42º –, os credores hipotecários estão
                       de segurança marí  ma, especifi camente, de safety. Ao longo   habilitados a proceder à venda do navio, mecanismo que
                       das úl  mas décadas, foram muitos, e materialmente muito   potenciou a urgente necessidade de uma solução, uma vez
                       signifi ca  vos, os casos que conheceram resolução em sede da   que, além da questão jurídica substan  va, o navio poderia
                       AML, sendo de acrescida u  lidade, pelo impacto que   veram   fi car acostado por um alongado período de tempo, com os –
                       até em termos de interesse público e de comunicação social,   muito signifi ca  vos – custos logís  cos e portuários inerentes
                       avaliar os factos mais prementes respeitantes aos navios   a uma tal situação.
                       “CHEM DAISY” (Horta, 2016), e “BETANZOS” (Lisboa, 2018); é   Com o precipitar dos acontecimentos, e devido à intensa
                       tal o que faremos em dois ar  gos.              pressão, ocorreram ameaças mais graves por parte da tri-
                        O tema é, igualmente, muito relevante, porquanto estas   pulação, o que obrigou a uma intervenção mais premente
                       situações vêm permi  ndo aos jurisconsultos que as estudam   e incisiva da Capitania do Porto. Na visita a bordo par  cipa-
                       desenvolver e aperfeiçoar quadros efi cazes de soluções,   ram o Comando Local da Polícia Marí  ma da Horta, o repre-
                       quer seja através de construções circunstanciadas em cum-  sentante legal da tripulação em Portugal – porquanto foi em
                       primento dos regimes legais vigentes, quer seja por aplica-  território português que foi interposta a acção judicial com
                       ção de matrizes e procedimentos já pensados para envolven-  vista à sa  sfação dos créditos laborais –, e representantes
                       tes factuais similares. Foi, aliás, assim, que desde o Séc. XIX   da autoridade portuária, face ao espaço jurisdicional em
                       se edifi caram e desenvolveram instrumentos legisla  vos do   causa. A intervenção da AML, naquela fase, incidiu primor-
                       foro marí  mo, e consequentemente, as próprias premissas   dialmente em matéria de  security, face à necessidade de
                       do Direito Marí  mo aplicado.                   garan  r a segurança de pessoas e bens, bem como promover
                                                                       e preservar o meio marinho; ou seja, accionar o modelo poli-
                       O NAVIO “CHEM DAISY”                            cial adequado ao potencial impacto criado pela ameaça dos
                                                                       tripulantes, bem como assegurar que o combus  vel era des-
                        Quanto ao “CHEM DAISY”, de construção rela  vamente   carregado do navio sem quaisquer incidentes, o que não se
                       recente (2010), com pavilhão de Malta, o seu proprietário –   revelaram tarefas fáceis atenta a postura incisiva e de grande
                       White Daisy Shipping Ltd.–   nha sede na Turquia, exis  a um   intransigência da tripulação, agravada por um quadro de pro-
                       credor hipotecário (um banco do Bahrain), sendo o armador   fundo desgaste psicológico.
                       igualmente de nacionalidade turca, construção que, como   Sobre a tripulação, é de referir que tanto o capitão como
                       é notório, não facilitava a abordagem jurídica ao caso e à   alguns dos elementos desembarcaram logo após a detenção
                       situação, facto que foi desde logo verifi cável aquando da sua   do navio no âmbito da inspecção do PSC, tendo o navio fi cado
                       detenção no porto da Horta no decurso de uma inspecção   entregue ao imediato, sendo este assis  do, no comando,
                       pelo Estado do Porto , realizada pelos inspectores da Dire-  pelo 2.º engenheiro, o qual estava a acusar um evidente e
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                       ção-Geral de Recursos Naturais, Segurança e Serviços Marí-  público desgaste emocional, o que poderia ter implicações
                         mos (DGRM), ou  Port State Control (PSC) como é usual-  gravíssimas, atento o facto do desembarque do combus  vel
                       mente conhecida a ac  vidade, tendo ainda decorrido uma   ter que ser por ele dirigido/coordenado. Atenta a envolvente
                       inspecção pelas autoridades do Estado de Bandeira  (Malta).   de profunda e latente instabilidade bem como o arrastar da
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                       A tripulação era composta, maioritariamente, por tripulantes   situação sem um desfecho previsível no tempo, proceder-se
                       turcos, e dois portugueses, encontrando-se já na altura em   ao desembarque do combus  vel poderia tornar-se numa
                       confl ito laboral com o armador por não verem sa  sfeitos os   tarefa de elevadíssimo risco – ainda estavam nos tanques do
                       pagamentos dos respec  vos vencimentos, situação de insta-  navio cerca de 450 toneladas –, o que acabou por ser ate-
                       bilidade que facilmente se foi alastrando para com as auto-  nuado devido ao facto de terem resultado efeitos posi  vos
                       ridades locais (portuária e marí  ma) como óbvia forma de   das negociações com o representante da tripulação, tendo
                       pressão, quadro que conheceu o seu ponto mais complexo   os tripulantes aceite efectuar a descarga do combus  vel.


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