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REVISTA DA ARMADA | 562
          O REI AFONSO E SANTA CRUZ



          DE COIMBRA




          “E despois, houve batalha em nos campos d´Ourique e venceu-a. E dês ali em diante se chamou el-rei Dom Afonso de Portugal, e entom tomou
          por armas as cinco quinas (…)”
                                                                                                      IV Crónica Breve de Santa Cruz, Séc. XIV


          A INDIVIDUALIDADE DE COIMBRA NOS                    territórios que lhes estavam concedidos, o que, para o príncipe
          PRIMÓRDIOS DA NACIONALIDADE                         fundador, era muito importante em termos de decisão política,
                                                              e até político-económica. É relevante sublinhar que o centro ur-
                                                              bano existente nos primórdios do Séc. XII na Europa pouco tinha
             fonso, rei dos portugueses desde 1139 , impulsionou a funda-  que ver com as cidades de configuração quatrocentista ou qui-
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         Ação em Coimbra , a 28 de Junho de 1131, pelo arcediago da   nhentista,  sobretudo  atentos  os  factores  relacionados  com  as
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          Sé – o Presbítero Telo – de uma comunidade mesteiral de cónegos   capacidades de produção artesanal, de actividade crescente dos
          regrantes de Santo Agostinho , que viria a ser estruturante no seu   artífices, de fomento e expansão portuária, de estruturação das
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          reinado, e que, integrando-se num quadro mais vasto da visão do   economias de base monetária e de todas as actividades ligadas
          príncipe portucalense, era então o reflexo das tendências da Cris-  às profissões do Direito e das demais que dependiam das funções
          tandade para o movimento dirigido a Jerusalém, que havia sido   da escrita, e da fundamental importância que nestas tinham os
          conquistada a 13 de junho de 1099 pelos cruzados . A Rainha D. Te-  clérigos  e os eruditos. Contudo, já com as bases que propiciava,
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          resa tinha manifestado o mesmo entusiasmo por tais ideais quando   toda a envolvente de Santa Cruz concedia ao Príncipe uma capa-
          a ela haviam chegado as pretensões de Hospitalários e Templários .  cidade organizacional diferenciada, mais robusta, o que potencia-
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           Existia já em Coimbra, desde 1111, e assim reconhecido por D.  va o exercício do seu poder régio.
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          Henrique , um concelho autónomo, tendo, mais tarde, o Prínci-  Coimbra era, desde o último quartel do Séc. XI, um centro que
          pe Afonso seleccionado de entre os nobres da cidade alguns dos  afirmava  a  sua  individualidade,  porque  preservava,  ainda  – ao
          seus conselheiros mais próximos, formando assim o seu séquito  contrário das tradições mais guerreiras e agrárias da cultura aci-
          juntamente com cavaleiros nobres de entre Douro e Minho, e  ma do Douro – características próprias quer da cultura moçárabe ,
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          que lhe asseguravam as estruturas de defesa das terras de Portu-  quer mesmo do direito visigótico, e também algumas instituições
          gal. Sendo as questões de soberania e defesa as mais prementes,  sobrevivas do direito romano, num equilíbrio existente com um
          o príncipe portucalense escolheu, preferencialmente, até por ra-  quadro de usos e costumes mais próprias de uma cultura medi-
          zões estratégicas, os responsáveis pelas tenências e alcaiadarias   terrânica. Foi, aliás, esta individualidade cultural que criou alguma
          mais próximas da (então) fronteira do Reino, nomeando-os, como   oposição entre os cónegos regrantes de Santa Cruz de Coimbra
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          defende José Mattoso, “em comissões temporárias e sem carác-  e o poder eclesiástico exercido pelo arcebispo de Braga  e pelo
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          ter hereditário”. Era muito claro, sabemo-lo pela Crónica Breve de   bispo . O Papa Pascoal II havia estabelecido os limites da diocese
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          Coimbra e pela Crónica Galego-Portuguesa, que o Príncipe Afon-  de Coimbra em 1101 . As elites de Coimbra, designadamente os
          so tinha especial cuidado nos equilíbrios sócio-políticos entre a   cavaleiros de pequena nobreza das famílias que – décadas antes
          nobreza e o poder dos concelhos – e os cavaleiros não nobres   da fundação do Mosteiro – se opuseram aos nobres franceses que
          dos concelhos –, sendo que, quanto a estes, lhes respeitava as li-  D. Henrique tinha decidido colocar a administrar a cidade, consti-
          berdades e os privilégios concedidos, e cuja tradição comunitária   tuíam, aliás, uma força sustentadora quer dos cónegos de Santa
          mais longínqua se pode encontrar desde a organização romana   Cruz, quer da defesa da individualidade cultural da cidade.
          que se foi mantendo entre as populações, com maior premência,   Recorde-se que já desde 1117 havia, em Coimbra, uma confraria
          em terras a sul do Douro e do Mondego.              de invocação do Santo Sepulcro, muito fomentada por peregrinos
                                                              que tinham rumado à Terra Santa, e que já anos antes o prior do
                                                              mosteiro de Leça – chamado do Bailio – organizou uma comuni-
          DE FRONTEIRA DE CONDADO                             dade local de pobres de Jerusalém, o que ocorreu já depois da
          A CENTRO DO REINO                                   entrega aos Hospitalários do mosteiro pela rainha D. Teresa, facto

           Coimbra tinha-se tornado uma cidade cristã em 1064 , situan-
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          do-se na fronteira das terras portucalenses, estando, portanto,
          assim exposta aos primeiros embates de investidas de exércitos e
          de grupos de ataque muçulmanos, como ocorreu com o violento
          ataque de 1117. Era um ponto estratégico, fundamental para a
          sedimentação do território, mas, como polo sócio-cultural, a sua
          importância era muito relevante, não apenas pelo foral concedi-
          do por D. Henrique em 1111, mas também pelo facto de a sua
          população ter características específicas, notoriamente diversas
          das terras acima do Douro.
           A  presença  do  Príncipe  Afonso  em Coimbra, que  se  sistema-
          tizou, permitia-lhe, ainda, no quadro do exercício dos poderes
          medievais na envolvente portuguesa naqueles inícios do Séc. XII,
          assegurar o necessário equilíbrio entre a sua autoridade régia e
          a que era exercida pela nobreza senhorial e terra-tenente nos


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