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REVISTA DA ARMADA | 562
que é extremamente relevante, porque a própria Ordem apenas LIGAÇÕES À CÚRIA ROMANA
teve reconhecimento papal formal em 1113. O ocidente portuca-
lense acompanhava, assim, o desenho político e eclesiástico que Os cónegos de Santa Cruz, pretendendo acentuar a sua individu-
se ia formando. alidade, enviaram uma delegação à Cúria romana chefiada pelo
Ao ligar intrinsecamente, e em definitivo, o condado de Portuca- próprio Telo e por João Peculiar, no sentido de adquirir a protecção
le e o de Coimbra, e ao instituir, em Santa Cruz, a base do poder papal, tendo conseguido reunir com Guido de Vico , que já tinha
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régio que exercia pela sua Cúria, o Rei Afonso criou uma coesão sido delegado papal em Compostela. O facto é que Inocêncio II con-
territorial e um sentido político unitário, sustentado numa missão cedeu, a 20 de Maio de 1135, uma bula, onde dava a Santa Cruz a
global mais abrangente, socialmente mais complementada, ainda protecção papal e a isenção canónica – e recomendava os cónegos
que salvaguardando as diferenças culturais próprias. Essa força vi-
ria a ser fundamental no desenho territorial do Portugal que cres-
cia. Desde os primórdios da sua fundação, o Mosteiro de Santa
Cruz teve uma muito notória protecção real, constituindo, indiscu-
tivelmente, a pedra basilar cultural imprescindível à sedimentação
das burocracias próprias do exercício da autoridade régia.
SANTA CRUZ E O CONHECIMENTO INSTALADO
Os ataques constantes a que Coimbra se encontrava sujeita na
década de 30 (Séc. XII), implicaram, como nos ensinam José Her-
mano Saraiva, Oliveira Marques e José Mattoso, um reforço das
estruturas defensivas da cidade, e a criação de bases sustentadas
de forma a permitir que dali se pudessem lançar ataques para as
grandes áreas de Santarém e de Lisboa (a esta cidade, e à zona
marítima de aproximação ao porto), o que daria uma contextua-
lização territorial diferente a Portugal, e que acabou por ser um
passo fundamental na solidificação da situação político-económi-
ca do país em torno dos mais poderosos centros urbanos e de
poder, Coimbra, Santarém e Lisboa, além de Braga e Guimarães
bem entendido.
O primeiro edifício – românico, com um claustro empolgante
– em Santa Cruz teve o seu processo de construção inicial entre
1132 e 1223 , tendo sido implementados avultados trabalhos de
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reconstrução e alteração a partir dos inícios de Quinhentos, com
a reconstrução do claustro , a construção dos soberbos túmulos
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dos Reis Afonso e Sancho (uma fantástica obra manuelina que re-
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sultou da prometida trasladação real ) em 1507, do famosíssimo
cadeiral (1521), e ainda do coro alto (1530) .
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Santa Cruz era, indubitavelmente, o principal centro de estudos
em Portugal nos primeiros quartéis da Dinastia Afonsina – tendo
muitos mestres e eruditos com formação em cidades italianas
(Pisa, Pavia, Roma), e também em Paris e Avignon, sendo que
vários cónegos copistas fizeram viagens a São Ruão (1137-1139)
–, nela tendo estudado figuras ilustres como o próprio S. António
que se sabe ter estado no mosteiro de 1213 a 1220 (já depois de
ter estado em S. Vicente de Fora de 1210 a 1212), e antes de ir regrantes ao Príncipe Afonso e ao Bispo da Diocese – privilégios
para o Convento dos Olivais em Coimbra. posteriormente confirmadas com Alexandre III. Foi precisamente
Os cónegos agostinhos elaboraram extensa escrita e informação naquele mês (Maio) que se realizou o famoso Concílio de Pisa, ao
histórica de relevantíssimo interesse para o estudo das primeiras qual assistiram Telo e João Peculiar, e no qual reuniram com o ilustre
décadas da nacionalidade portuguesa. De entre outros, como nos Bernardo de Claraval , eminente figura tida como muito próxima
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ensina José Mattoso, temos – traduzidos e com notas historio- do Papa e um dos seus conselheiros pessoais de confiança.
gráficas desde 1998 – a Vida de Telo (Vita Tellonis) , a Vida de Telo e João Peculiar procurariam, ainda, designadamente em
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Teotónio e a Vida de Martinho de Soure, todos do Séc. XII. Todo Pavia, mais aprofundadas bases do conhecimento quanto ao
este espólio de textos, bem como outros de conteúdo normati- cumprimento estrito da Regra de Santo Agostinho, tendo trazi-
vo, é bem elucidativo do elevado grau de desenvolvimento e da do – como defende José Mattoso – do mosteiro de Saint Ruf de
reconhecida erudição dos estudos produzidos em Santa Cruz. Os Avignon, uma cópia do costumeiro de Letberto , sendo que, dé-
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cónegos regrantes – que usufruíam de uma isenção canónica, cadas mais tarde, os cónegos regrantes adaptariam muitos usos
como antes se referiu – levavam uma vida austera, contemplativa e costumes cistercienses ainda antes de 1160. João Peculiar – já
e disciplinada, mas viviam no meio da urbe e não afastados da depois de ter dirigido a reforma do mosteiro de Grijó, em 1134, e
cidade como os Cluniacenses e os Cistercienses, estes ainda mais de outros mosteiros mais antigos (Séc. X e XI) entre Douro e Mi-
reservados. Os regrantes davam particular importância à recep- nho, no sentido de seguirem a regra dos agostinhos – seria eleito
ção de peregrinos e hóspedes e à actividade hospitalar e de apoio, Bispo do Porto ainda durante 1137 e, mais tarde, arcebispo de
tendo fundado várias albergarias, como a conhecida em Poiares. Braga, uma posição eclesiástica eminente na Cristandade.
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