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          que é extremamente relevante, porque a própria Ordem apenas   LIGAÇÕES À CÚRIA ROMANA
          teve reconhecimento papal formal em 1113. O ocidente portuca-
          lense acompanhava, assim, o desenho político e eclesiástico que   Os cónegos de Santa Cruz, pretendendo acentuar a sua individu-
          se ia formando.                                     alidade,  enviaram  uma  delegação  à  Cúria  romana  chefiada  pelo
           Ao ligar intrinsecamente, e em definitivo, o condado de Portuca-  próprio Telo e por João Peculiar, no sentido de adquirir a protecção
          le e o de Coimbra, e ao instituir, em Santa Cruz, a base do poder   papal, tendo conseguido reunir com Guido de Vico , que já tinha
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          régio que exercia pela sua Cúria, o Rei Afonso criou uma coesão   sido delegado papal em Compostela. O facto é que Inocêncio II con-
          territorial e um sentido político unitário, sustentado numa missão   cedeu, a 20 de Maio de 1135, uma bula, onde dava a Santa Cruz a
          global mais abrangente, socialmente mais complementada, ainda   protecção papal e a isenção canónica – e recomendava os cónegos
          que salvaguardando as diferenças culturais próprias. Essa força vi-
          ria a ser fundamental no desenho territorial do Portugal que cres-
          cia. Desde os primórdios da sua fundação, o Mosteiro de Santa
          Cruz teve uma muito notória protecção real, constituindo, indiscu-
          tivelmente, a pedra basilar cultural imprescindível à sedimentação
          das burocracias próprias do exercício da autoridade régia.

          SANTA CRUZ E O CONHECIMENTO INSTALADO

           Os ataques constantes a que Coimbra se encontrava sujeita na
          década de 30 (Séc. XII), implicaram, como nos ensinam José Her-
          mano Saraiva, Oliveira Marques e José Mattoso, um reforço das
          estruturas defensivas da cidade, e a criação de bases sustentadas
          de forma a permitir que dali se pudessem lançar ataques para as
          grandes áreas de Santarém e de Lisboa (a esta cidade, e à zona
          marítima de aproximação ao porto), o que daria uma contextua-
          lização territorial diferente a Portugal, e que acabou por ser um
          passo fundamental na solidificação da situação político-económi-
          ca do país em torno dos mais poderosos centros urbanos e de
          poder, Coimbra, Santarém e Lisboa, além de Braga e Guimarães
          bem entendido.
           O primeiro edifício – românico, com um claustro empolgante
          – em Santa Cruz teve o seu processo de construção inicial entre
          1132 e 1223 , tendo sido implementados avultados trabalhos de
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          reconstrução e alteração a partir dos inícios de Quinhentos, com
          a reconstrução do claustro , a construção dos soberbos túmulos
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          dos Reis Afonso e Sancho (uma fantástica obra manuelina que re-
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          sultou da prometida trasladação real ) em 1507, do famosíssimo
          cadeiral (1521), e ainda do coro alto (1530) .
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           Santa Cruz era, indubitavelmente, o principal centro de estudos
          em Portugal nos primeiros quartéis da Dinastia Afonsina – tendo
          muitos mestres e eruditos com formação em cidades italianas
          (Pisa, Pavia, Roma), e também em Paris e Avignon, sendo que
          vários cónegos copistas fizeram viagens a São Ruão (1137-1139)
          –, nela tendo estudado figuras ilustres como o próprio S. António
          que se sabe ter estado no mosteiro de 1213 a 1220 (já depois de
          ter estado em S. Vicente de Fora de 1210 a 1212), e antes de ir   regrantes ao Príncipe Afonso e ao Bispo da Diocese – privilégios
          para o Convento dos Olivais em Coimbra.             posteriormente confirmadas com Alexandre III. Foi precisamente
           Os cónegos agostinhos elaboraram extensa escrita e informação   naquele mês (Maio) que se realizou o famoso Concílio de Pisa, ao
          histórica de relevantíssimo interesse para o estudo das primeiras   qual assistiram Telo e João Peculiar, e no qual reuniram com o ilustre
          décadas da nacionalidade portuguesa. De entre outros, como nos   Bernardo de Claraval , eminente figura tida como muito próxima
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          ensina José Mattoso, temos – traduzidos e com notas historio-  do Papa e um dos seus conselheiros pessoais de confiança.
          gráficas desde 1998 – a Vida de Telo (Vita Tellonis) , a Vida de   Telo e João Peculiar procurariam, ainda, designadamente em
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          Teotónio e a Vida de Martinho de Soure, todos do Séc. XII. Todo   Pavia,  mais  aprofundadas  bases  do  conhecimento  quanto  ao
          este espólio de textos, bem como outros de conteúdo normati-  cumprimento estrito da Regra de Santo Agostinho, tendo trazi-
          vo, é bem elucidativo do elevado grau de desenvolvimento e da   do – como defende José Mattoso – do mosteiro de Saint Ruf de
          reconhecida erudição dos estudos produzidos em Santa Cruz. Os   Avignon, uma cópia do costumeiro de Letberto , sendo que, dé-
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          cónegos  regrantes  –  que  usufruíam  de  uma  isenção  canónica,   cadas mais tarde, os cónegos regrantes adaptariam muitos usos
          como antes se referiu –  levavam uma vida austera, contemplativa   e costumes cistercienses ainda antes de 1160. João Peculiar – já
          e disciplinada, mas viviam no meio da urbe e não afastados da   depois de ter dirigido a reforma do mosteiro de Grijó, em 1134, e
          cidade como os Cluniacenses e os Cistercienses, estes ainda mais   de outros mosteiros mais antigos (Séc. X e XI) entre Douro e Mi-
          reservados. Os regrantes davam particular importância à recep-  nho, no sentido de seguirem a regra dos agostinhos – seria eleito
          ção de peregrinos e hóspedes e à actividade hospitalar e de apoio,   Bispo do Porto ainda durante 1137 e, mais tarde, arcebispo de
          tendo fundado várias albergarias, como a conhecida em Poiares.  Braga, uma posição eclesiástica eminente na Cristandade.


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