Page 19 - Revista da Armada
P. 19
REVISTA DA ARMADA | 562
Tornaram-se nas evidências óbvias que passaram a definir o es- Este atlas foi feito contra a viagem de Fernão de Magalhães, e a
tado da ciência, para o presente e o futuro, acerca desse mais viagem de Fernão de Magalhães foi feita contra o Atlas Miller… O
célebre dos atlas mundiais da “Época dos Descobrimentos”. Quer mapamundo do Atlas Miller “é falso”… “porque foi feito assim,
quanto aos aspectos artísticos (a autoria da sumptuosa decora- de propósito, na época, pelos autores verdadeiros”. É uma falsi-
ção, pelo pintor miniaturista António de Holanda), quer quan- ficação geopolítica, em que ficou patente a estratégia portuguesa
to aos aspectos geográficos e geopolíticos (a própria razão-de- para enfrentar, em 1519, a estratégia castelhana.
-ser da feitura de um Atlas assim, tão luxuoso quão erróneo [!], O paradoxal “enigma” da “falsidade” do mapamundo de 1519 —
como instrumento de contra-informação, para com ele se tentar a propósito do qual, durante décadas, ao longo do século XX, se
contrariar a ideia da circum-navegabilidade da Terra e impedir o digladiaram alguns dos mais célebres e importantes historiadores
projecto que estava a ser preparado por Fernão de Magalhães em da Cartografia mundial, portugueses, italianos, franceses, ingle-
Sevilha...), quer quanto à identidade dos olhares para os quais foi ses, etc. (Giuseppe Caraci, Armando Cortesão, Marcel Destombes,
destinado (o olhar do futuro Imperador Carlos V, através do olhar Albert Kammerer, Edward Heawood, etc.) — ficou, por fim, assim
da sua irmã que estava em lua-de-mel com o “Rei da Pimenta” resolvido, em 2005-2006 em Coimbra e Barcelona. O conteúdo
Dom Manuel de Portugal…), quer quanto à identidade dos artí- geográfico, em relação à (não)circumnavegabilidade da Terra, à
fices que em Portugal o desenharam e decoraram (não somente inventada Terra Austral, e à (fantástica… totalmente falsa e menti-
um iluminador luso-flamengo e um jovem cartógrafo fidalgo por- rosa) geografia do Extremo Oriente, é deliberadamente erróneo
tuguês, mas também dois cartógrafos profissionais, pai e filho, (!)… E a verdadeira razão porque se apresenta (grosseiramente)
que, espantosamente, se concluiu que, indubitavelmente, eram como “neo-ptolomaico” (!) é para disfarçar esse ludíbrio.
luso-africanos [!] e por isso chamados, pelos seus contemporâ- Será, talvez, a maior (tentativa de...) falsificação geopolítica da
neos, como sendo “negros” [sic]). História… — ou, pelo menos, a maior geograficamente… — por ser
Essa aceitação é, neste momento (2021), total. Quer na comu- o primeiro logro que teve, ou tentou ter, uma dimensão planetá-
nidade científica, quer na opinião pública. Essa situação foi alcan- ria… E a verdade é que não teve êxito… pois em 1519 os navios de
çada em menos de vinte anos. Magalhães partiram mesmo, e fizeram a sua viagem.
O momento decisivo foi quando a própria Bibliothèque nationale
de France, a instituição proprietária onde se conserva o precioso
espécime cartográfico iluminado, mudou nos seus catálogos e nas
suas exposições a identificação, a referência, a ficha e as legendas
desse mais precioso dos espécimes cartográficos do Renascimento.
Acrescentou o nome do iluminador António de Holanda à lista dos
autores da obra-prima que guarda nas suas colecções, e passou a
chamar-lhe aquilo que ele realmente é: Atlas de Lopo Homem, Pe-
dro Reinel, Jorge Reinel, e António de Holanda. Isso aconteceu so-
bretudo desde 2012, por ocasião da monumental exposição L’Âge
d’Or des Cartes Marines (23.10.2012 - 27.01.2013), em que o “Atlas
Miller”, claro, foi a principal peça exposta, e o motivo gráfico usado
para o próprio símbolo dessa exposição (como sempre tem sido, e
sempre vai continuar a ser, em qualquer exposição para a qual o
vão buscar à caixa-forte onde é habitualmente guardado).
E é claro que, agora, em 2019-2022, estando em curso as cele-
brações, a nível mundial, dos 500 anos da primeira viagem de cir-
cum-navegação de Fernão de Magalhães e Juan Sebastián Elcano,
tal se tornou ainda mais momentoso. A Bibliothèque nationale
de France (BnF) e o Centre National de la Recherche Scientifique
(CNRS) até já publicaram (e colocaram, para maior divulgação,
no Youtube, em https://www.youtube.com/watch?v=OITFKM-
n81m8) o vídeo institucional respeitante a essa jóia da iluminura
na cartografia do Renascimento, conservada nas suas colecções
(atribuindo-lhe a sua verdadeira autoria, por António de Holan-
da), e ele pode agora ser visto por quem quer que seja.
UM LUXUOSO INSTRUMENTO DE CONTRA-INFOR-
MAÇÃO GEOPOLÍTICA E GEOESTRATÉGICA
O “Atlas Miller”, obra-prima artisticamente sumptuosa (incom-
parável), e geograficamente pioneira (mas, em alguma medida,
paradoxal…), é um luxuoso instrumento de contra-informação di-
plomática e geopolítica (é um deliberado logro geográfico…) que
foi mandado fazer expressamente para tentar contrariar a ideia
da circumnavegabilidade da Terra e para assim tentar impedir o
projecto que, exactamente ao mesmo tempo, nesses dias e meses
desse ano de 1519, estava a ser preparado em Sevilha por Fernão
de Magalhães; é a última tentativa portuguesa de recusa do plano Quadro a óleo atribuído a Garcia Fernandes, com o Rei D. Manuel e a sua terceira
esposa, a princesa flamenga D. Leonor irmã do Imperador Carlos V (Museu de São
de Colombo…! Roque - Misericórdia de Lisboa)
M
MAIO 2021AIO 2021 19