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REVISTA DA ARMADA | 573

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          e  da  propriedade ,  dogmas  nucleares  do  liberalismo  europeu   reformista que iniciou não apenas uma experiência parlamentar
          nascente naquele primeiro quartel do Séc. XIX.      forjada em princípios de separação de poderes, de liberalismo
           Não  obstante  todos  os  preceitos  do  Título  I  serem  basilares   de base democrática e de expressão formal de um quadro de di-
          e  requererem  uma  análise  específica  –  naturalmente,  não   reitos e deveres individuais, mas também um longo e riquíssimo
          compatível  com  o  presente  artigo  –  é  extremamente  útil   percurso de 2 séculos da história constitucional de Portugal.
          atentarmos em 4 deles: definia a Constituição no artigo 9º que
          “A  lei  é  igual  para  todos.  Não  se  devem,  portanto,  tolerar                  Dr. Luís da Costa Diogo
          privilégios do foro nas causas cíveis ou crimes, nem comissões                       Diretor Jurídico da DGAM
          especiais. Esta disposição não compreende as causas, que pela sua   N.R. O autor não adota o novo acordo ortográfico.
          natureza pertencerem a juízos particulares, na conformidade das
          leis”, acrescendo o artigo 10º que “Nenhuma lei, e muito menos a   Notas
          penal, será estabelecida sem absoluta necessidade”. Ambas estas   1  Aclamado imperador do Brasil a 12 de Outubro de 1822, e recebendo a coroa
          definições constitucionais indiciavam, claramente, a salvaguarda   imperial a 1 de Dezembro desse ano. Gorada, por iniciativa régia, a tentativa da
          do princípio da igualdade dos cidadãos perante a lei, e um critério   Assembleia Constituinte do Brasil de fazer aprovar uma Constituição em 1823 –
          de racionalidade objectiva na formulação legislativa, e o acesso   que era limitativa dos poderes e autoridade real – e após uma acção de repressão
                                                                sobre os seus opositores parlamentares realizada a 12 de Novembro de 1823, viria
          a  cargos  com  base  no  mérito,  sendo  tal  o  que  a  Constituição   a ser outorgada pelo Rei, após nomeação de um Conselho de Estado que lhe era
          enunciava no artigo 12º, estatuindo que “Todos os Portugueses   favorável, a Constituição de 1824.
                                                                 Um rei arrogante, odiado, conhecido pelos seus excessos desde muito novo, e
          podem ser admitidos aos cargos públicos, sem outra distinção,   2 que contribuiu, largamente, para dispendiosos gastos para o tesouro britânico, e
          que não seja a dos seus talentos e das suas virtudes”.   para revoltas populares.
           O  seu  artigo  16º  expressava  que  “Todo  o  Português  poderá   3  Desde o agravamento acentuado da doença mental do pai, George III.
          apresentar  por  escrito  às  Cortes  e  ao  poder  executivo   4  Com impacto nas artes, formas luxuosas da vida citadina e até no mobiliário faus-
          reclamações, queixas, ou petições, que deverão ser examinadas”,   toso.
          numa manifestação jurídica de que, de facto, a soberania tinha,   5  Onde o ex-imperador viria a falecer em 1821.
          no articulado constitucional, uma base e justificação popular, e,   6  Na presidência de Washington, Monroe havia sido Embaixador em França – onde
          juntamente com outros preceitos , previa a salvaguarda expressa   colheu as primeiras bases da filosofia liberal –, e já com o Presidente Madison
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                                                                tinha sido Secretário da Guerra. Foi conhecida a sua linha política firme contra o
          dos direitos de cidadania dos portugueses.            (então) expansionismo espanhol, sendo que a Florida foi anexada no decurso do
           A Constituição de 1822 foi, contudo, significativamente marca-  Tratado Adams-Onis exarado em 1819. Face às suas políticas para o continente
          da pelo seu Título III, de epígrafe Do Poder Legislativo e das Cor-  africano, há fortes indícios históricos que apontam para que a capital da Libéria,
                                                                Monróvia, lhe deva o nome.
          tes, constituído por 6 capítulos: CAP. I – A Eleição dos deputados   7  Ver o que desenvolvemos sobre o tema em “Geopolítica e Relações Internacio-
          de Cortes (artigos 32º a 74º); CAP. II, Da Reunião das Cortes (arti-  nais”, QuidJuris, 2005, Alfredo Wilensky, Rui Januário e Luís da Costa Diogo, e em
          gos 75º a 93º); CAP. III - Dos Deputados das Cortes (artigos 94º a   “Manual de Direito Internacional – TOMO I”, Petrony, 2020, dos dois últimos au-
                                                                tores.
          101º); CAP. IV – Das atribuições das Cortes (artigos 102º a 103º);   8
                                                                 O Rei anulou a constituição do Senado, e instituiu a designada Carta de 1814, a
          CAP. V – Do Exercício do Poder Legislativo (artigos 104º a 116º) e   qual previa o princípio da liberdade religiosa (entre várias outras liberdades), e
          CAP. VI – Da Deputação permanente, e da reunião extraordiná-  uma organização parlamentar formada pela Câmara dos Deputados e pela Câmara
          ria das Cortes (artigos 117º a 120º).  Expressava-se o princípio   dos Pares.
                                                                 Fortemente impulsionada, também, em diversas vertentes e áreas de actuação,
          da consagração de uma única câmara parlamentar, eleita bienal-  9 pelos seus principais personagens como Marat, Robespierre, Saint-Just, Danton,
          mente por sufrágio directo e universal .              Mirabeau e Lafayette.
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           O Título IV, de epígrafe Do Poder Executivo ou do Rei, integrava   10  De entre os deputados eleitos pelo Minho, área mais tradicionalista, não juraram
          54 artigos , expressando-se no artigo 121º do CAP. I , que “A   a Constituição 5 deles.
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          autoridade do Rei provém da Nação, e é indivisível e inalienável”,   11  O patriarca da liberdade portuguesa como então era designado.
          numa definição explícita que a soberania que sustenta o poder   12  Que, depois de ter sido juiz de fora, tinha sido designado desembargador da
          Real  reside  na  Nação  e  nos  seus  representantes.  Como  clara   Relação do Porto logo em 1811, embora apenas tomasse posse em 1817.
                                                                 Que simbolizava bem a importância que os movimentos ligados à Maçonaria
          limitação  daquele  poder,  preceituava  o  artigo  122º,  que  “Esta   13 tiverem, de forma determinante, em todo o processo revolucionário e de imple-
          autoridade geralmente consiste em fazer executar as leis; expedir   mentação das reformas liberais.
          os decretos, instruções, e regulamentos adequados a esse fim; e   14  Conforme expresso no artigo 20º.
          prover a tudo o que for concernente à segurança interna e externa   15  Título I – Dos Direitos e Deveres Individuais dos Portugueses; Título II – Da Nação
          do Estado, na forma da Constituição.                  Portugueza, e seu Território, Religião, Governo e Dinastia; Título III – Do Poder Le-
           Os ditos decretos, instruções, e regulamentos serão passados   gislativo e das Cortes; Título IV – Do Poder Executivo ou do Rei; Título V – Do Poder
                                                                Judicial; e Título VI – Do Governo Administrativo e Económico.
          em nome do Rei”.                                      16  Que previa 19 artigos.
           Como forma expressa ainda mais notória de limitar a autoridade   17  Estatuía o artigo 6º que “A propriedade é um direito sagrado e inviolável, que
          Real  –  tal  como  anteriormente  era  considerada  e  definida  –,   tem qualquer Português, de dispor de sua vontade de todos os seus bens, segundo
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          estabelecia  o  artigo  124º  que:  “O  Rei  não  pode:  I.  Impedir  as   as leis. Quando, por alguma razão de necessidade pública e urgente, for preciso
                                                                que ele seja privado deste direito, será primeiramente indemnizado, na forma que
          eleições dos Deputados; opor-se à reunião das Cortes; prorrogá-  as leis estabelecerem”.
          las, dissolvê-las, ou protestar contra as suas decisões; II. Impor   18  Definia o artigo 17º que “Todo o Português tem igualmente o direito de expor
          tributos, contribuições ou fintas; III. Suspender Magistrados, salvo   qualquer infracção da Constituição, e de requerer perante a competente Autorida-
          nos termos do artigo 197º; IV. Mandar prender cidadão algum,   de a efectiva responsabilidade do infractor”.
          excepto:  1.º  quando  o  exigir  a  segurança  do  Estado,  devendo   19  Prevendo-se a exclusão das mulheres, dos analfabetos e dos frades.
                                                                  Portanto,  um  âmbito  muito  menor  que  os  88  artigos  dedicados  ao  Poder
          então ser o preso entregue dentro de quarenta e oito horas ao   20 Legislativo.
          Juiz competente: 2.º quando as Cortes houverem suspendido as   21  De epígrafe Da Autoridade, Juramento e inviolabilidade do Rei.
          formalidades judiciais (artigo 211º); V. Alienar porção alguma do   22  Sendo notórias as diferenças que a formulação constitucional de 1822 impunha,
          território Português, e VI. Comandar força armada”. O Rei não   preceituava, ainda, o artigo 125º, que o Rei não podia, sem consentimento prévio
          era, mais, o detentor de um poder supremo, único e ilimitado.  das Cortes: “(…) I. Abdicar a Coroa; II. Sair do Reino de Portugal e Algarve; e se o
           A presente matéria exigiria, certamente, uma monografia bem   fizer, se entenderá que a abdica; bem como se, havendo saído com licença das Cor-
                                                                tes, a exceder quanto ao tempo ou lugar, e não regressar ao reino sendo chamado.
          mais desenvolvida, mas entendemos que este breve contributo   A presente disposição é aplicável ao sucessor da Coroa, o qual contravindo-a, se
          permite perceber o contexto e âmbito da Constituição de 1822, e   entenderá que renuncia o direito de suceder na mesma Coroa; e ainda Tomar em-
          a envolvente sócio-política que levou à sua assinatura, momento   préstimo em nome da Nação”.


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