Page 312 - Revista da Armada
P. 312
O Bey de Tunis
O Bey de Tunis
Drama em três actos e final feliz
Drama em três actos e final feliz
1º ACTO
uma tarde de sol, numa varanda
em Sesimbra sobre o mar, lia
Nvelhos números da revista O
Occidente. Um deles, precisamente do
dia 30 de Junho de 1909, trazia a notí-
cia do falecimento de José Sabino Alves
que, tendo sido capitão da galera
Viajante, chegara a Port Said “no pró-
prio dia em que se inaugurou a abertura
do antigo istmo, transformado em au-
têntico canal”. E mais, o articulista
salientava que não se tinha perdido a
honra do convento, dado que a corveta
Estephania, designada para participar
nas cerimónias de abertura não con-
seguiu estar presente, dado um violento
temporal que a obrigou a voltar ao
porto de armamento.
Achei estranho que Eça de Queiroz, O erro propagou-se. Neste postal que reproduz uma tela com o retrato da galera Viajante, volta a dizer-se que este navio
na carta que nos deixou sobre a inaugu- representou Portugal na inauguração do Canal de Suez.
ração do Canal de Suez, não tivesse
dado conta da presença duma bandeira Virgem Maria; os ateus invocam a de contentamento. Aqui está o meu Bey
portuguesa nesse notável acontecimen- morte, a doce aniquilação da matéria; os de Tunis! Vou arrasá-lo!
to. Alguma coisa estava errada. mais violentos pensam em atrair o moço E, de facto, não me poupou. Num dos
Ao tentar esclarecer esta contradição, da tipografia com palavras doces, cortá- principais jornais da capital, escreveu um
soube da existência em França da -lo aos pedaços com uma navalha de longo texto em que se admira “que um
Association du Souvenir de Ferdinand barba, esconder os fragmentos na sarjeta ilustre académico recorra a documentos
de Lesseps et du Canal de Suez, que foi doméstica...E as botas, lá no fundo, de arquivos franceses para justificar a
criada com a finalidade de enaltecer a ironicamente, rangem! presença portuguesa na inauguração do
figura deste cidadão ilustre e da obra Ah, caro Chagas, é daí que vêm as cãs Canal de Suez quando sabia da sua priori-
que realizou. Por amabilidade da pre- precoces. Sabe você o que eu fiz numa dade ( o sublinhado é meu ) e cumpria
sidente desta instituição, Madame destas agonias, sentindo o moço da averiguar até à exaustão os factos aponta-
Boisson, recebi a relação dos navios tipografia a tossir na escada, e não dos que devem constar nos nossos arqui-
que estiveram nas cerimónia da inaugu- podendo arrancar uma só ideia útil do vos”. E como não tem paciência para, ele
ração e na qual não consta a presença crânio, do peito, ou do ventre? Agarrei próprio, se meter em tais arquivos, recorre
da Viajante. ferozmente da pena e dei, meio louco, a Armando de Aguiar e à sua obra O
Peguei neste assunto, juntei-lhe um uma tunda desesperada no Bey de Mundo que os Portugueses Criaram, para
pouco da história da construção do Tunis... me desancar e demonstrar, definitiva-
Canal de Suez, talvez o maior No Bey de Tunis? Sim, meu caro mente, que a Viajante esteve na inaugu-
empreendimento do século XIX, e apre- Chagas, nesse venerável chefe de esta- ração do Canal:
sentei uma comunicação na Academia do, que eu nunca vira, que nunca me “O canal ia ser finalmente inaugurado
de Marinha em Março de 1991. fizera mal algum, e que creio mesmo a nesse dia 17 de Novembro de 1869.
esse tempo tinha morrido. Não me Porém, naquele momento histórico surgiu
2º ACTO importei. Em Tunis há sempre um Bey; um óbice. Como nenhuma barca ainda
arrasei-o.” havia atravessado o canal, não existia
Numa tarde chuvosa e fria, um jorna- piloto prático que pudesse conduzir qual-
lista esfrega as mãos para aquecer 3º ACTO quer embarcação. Para o comandante
enquanto procura um tema para o artigo José Sabino Gonçalves não constituiu isso
que tem de escrever para o jornal do dia A chuva continua e agora empurrada contrariedade de maior. Mandou conser-
seguinte. Está sem inspiração. Toca o pelo vento, bate violentamente nos vidros tar a gávea, desfraldar as velas. E assumiu,
telefone. É da redacção perguntando se da janela. O jornalista procura desespe- ele próprio, a direcção do leme.
já tem o artigo pronto. Desespera. radamente entre os papeis que tem em Imponente, com a bandeira azul e branca
Lembra-se que o Eça, o grande Eça já cima da secretária. Nem sabe o que batida pela brisa de dois continentes –
passou pelo mesmo. Vai buscar as Notas procura. Até que lhe salta à vista um África e Ásia – e saudada pelas marinhas
Contemporâneas, e relê este texto sub- recorte com a notícia da minha comuni- dos dois países, a Viajante, aproou ao
lime: cação na Academia de Marinha. canal e entrou no Mar Vermelho. Depois
“Inferno! E então os crentes rezam à É isto mesmo! E esfrega as mãos, agora, alcançou o Índico. Cumpria-se mais uma
22 SETEMBRO/OUTUBRO 2001 • REVISTA DA ARMADA