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A obra publicada de Pedro Nunes é essen- abateram sobre os arquivos dos Armazéns da de cartas de marear e fabricantes de instru-
cialmente a de um matemático, e não a de Guiné e da Índia, onde essa documentação mentos náuticos (5). Em 1563, juntamente
um cosmógrafo. presumivelmente se encontraria. com Jorge Reinel, Pedro Nunes examinou
Não causa surpresa que, neste contexto, a ––––––––––––– António Martins, o qual foi “achado auto e
apreciação que Nunes emite sobre os co- Não é meu objectivo avaliar o impacte de suficiente para fazer cartas de marear e
nhecimentos de pilotos e marinheiros seja Pedro Nunes na marinharia portuguesa do estrellabios e agulhas”, e em 1564, também
muitas vezes negativa. Não supreende tam- seu tempo. Esta é uma questão complexa que juntamente com Jorge Reinel, examinou
bém que, neste âmbito, o que é sempre va- não pode sequer ser aflorada no pouco Bartolomeu Lasso, a 17 de Maio, e Luís
lorizado seja a inovação teórica e o desen- espaço de que disponho. Procurarei, todavia, Teixeira, a 18 de Outubro (6).
volvimento abstracto, em prejuízo da relevân- ajudar a clarificar um aspecto que julgo ser Mas estes factos bem conhecidos são
cia prática. De facto, pode dizer-se que tudo prévio a essa avaliação: Que sabemos acerca muito pouco quando se olha para a bio-
isto faz parte do programa noni- grafia de Pedro Nunes e se pon-
ano em matemática, um progra- dera com algum cuidado as
ma que insiste declaradamente na circunstâncias da sua vida.
dicotomia entre a arte e a ratio – Um aspecto bem conhecido
como deixou expressamente assi- da vida de Pedro Nunes foi ter
nalado no título do seu De arte passado os anos que viveu em
atque ratione navigandi (1573). Coimbra em frequentes viagens
Não quero com isto dizer que para Lisboa. Essa vida atarefada
as contribuições de Nunes para a teria repercussões muito negati-
navegação tenham sido meno- vas na sua actividade docente
res. Pelo contrário, as suas mui- em Coimbra – as suas ausências
tas contribuições para variados da Universidade causaram
aspectos relativos à navegação escândalo - e na sua produção
foram, sem dúvida, o legado científica: entre 1547, ano em
mais importante do seu trabalho. que foi nomeado cosmógrafo-
Mas foram contribuições teóri- -mor, e 1566, não publicou
cas, que se ofereciam como tal. qualquer obra. Estas duas dé-
Como sempre sucede em Ciên- cadas – aquelas, precisamente,
cia, foi necessário que decor- em que as suas capacidades in-
resse algum tempo até que essas telectuais e maturidade científica
ideias teóricas pudessem ser estariam no seu auge - são um
transformadas em aplicações e hiato na sua carreira de matemá-
melhoramentos práticos. Difi- tico que reclama uma explica-
cilmente as inovações de Pedro ção. Dificilmente se pode acre-
Nunes em navegação teórica – ditar que Nunes sofresse todos
algumas delas verdadeiramente esses incómodos com o objec-
notáveis - seriam integradas na tivo de vir para Lisboa polemicar
marinharia do seu tempo. com pilotos e marinheiros, ou
Por isso, procurar a influência para presidir aos poucos exames
de Pedro Nunes na marinharia que os documentos registam, ou
portuguesa do século XVI inspec- - ainda menos credível - simples-
cionando textos que não tinham mente para gozar as delícias da
por objectivo sequer comunicar vida na Corte. Não me parece
com esses marinheiros – apesar crível que, aquele que declarou
do que as palavras de Nunes por ter “perdido irremediavelmente a
vezes deixam entender – parece- saúde com os seus estudos de
-me ser um erro de julgamento. matemática”, e que, nos anos
Pela mesma razão, citar as pa- cinquenta se correspondia com
lavras de Pedro Nunes nesses tra- Primeira explicação do conceito e representação gráfica de uma curva loxodrómica. autoridades como John Dee e
balhos, sem clarificar o contexto Pedro Nunes, Tratado da Sphera, 1537. – Lisboa, Biblioteca Nacional (Res. 410 V). Jacques Peletier, interrompesse
em que foram escritas, é um con- abruptamente a sua produção
vite ao engano (4). das actividades de Pedro Nunes como cos- científica para tratar o seu cargo de cosmó-
Dito de outra maneira. As actividades mógrafo e cosmógrafo-mor? Isto é, que sabe- grafo-mor como uma sinecura.
matemático-teóricas de Pedro Nunes foram mos acerca daquelas suas actividades que, Pelo contrário, a interrupção de publi-
as que deixaram o registo documental mais pela sua natureza, obrigavam a um contacto cações, o sofrível desempenho docente na
importante. O seu perfil matemático e a próximo com os práticos do mar? Universidade, as frequentes deslocações de
importância das suas contribuições para a Sabemos que, em 1529, Pedro Nunes foi Coimbra para Lisboa, tudo isto leva a con-
história da matemática são, por isso, nomeado cosmógrafo, o que é um facto cluir que, de meados dos anos quarenta a
razoavelmente simples de caracterizar. interessante pois nos revela que nessa data – meados dos anos sessenta, Pedro Nunes
Porém, não é lícito concluir que Nunes foi muito antes do aparecimento do seu primeiro optou deliberadamente por se concentrar no
apenas um teórico insensível aos constran- trabalho impresso, o Tratado da Sphera seu encargo de cosmógrafo-mor, em detri-
gimentos da vida no mar, examinando (1537) - já tinha alguma competência reco- mento dos seus outros compromissos. Esta
somente os seus textos de teoria. O que falta nhecida em assuntos técnico-científicos. escolha pela sua acção enquanto cosmó-
conhecer é a sua acção como cosmógrafo, Sabemos também que, em 1547, foi nomea- grafo-mor em prejuízo das suas obrigações
acção que, pela sua própria natureza, deixou do cosmógrafo-mor do reino. Sabemos ainda docentes e da sua carreira científica deno-
um registo histórico muito mais fragmentário que cumpriu pelo menos uma das obri- tam, quanto a mim, um claro reconhecimen-
e de acesso muito mais difícil – para já não gações inerentes ao cargo de cosmógrafo- to da importância da sua acção junto de pilo-
mencionar as várias calamidades que se -mor: a de examinar os candidatos a mestres tos, cartógrafos e fabricantes de instrumentos.
22 DEZEMBRO 2002 • REVISTA DA ARMADA