Page 385 - Revista da Armada
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Na verdade, durante cerca de vinte anos  anotações manuscritas marginais, quase de  Por tudo o que foi dito, não posso estar de
         Pedro Nunes, o “sábio de gabinete”, pouco  certeza pelo punho do próprio Nunes. Numa  acordo com Morais e Sousa quando diz que
         deve ter disfrutado do remanso do seu gabi-  anotação para o dia 23 de Setembro de  a existência de Pedro Nunes “passou des-
         nete de trabalho em Coimbra.       1568, pode ler-se: “comecej a fazer cartas de  percebida dos pilotos”, e considero, não
           Quem queira conhecer a carreira de  marear em Lxª cõ bertolomeu Lasso” (9). Este  tanto incorrecto, mas sobretudo infundado, o
         Nunes como cosmógrafo-mor tem de deslin-  brevíssimo fragmento tem, quanto a mim,  julgamento de Teixeira da Mota, quando
         dar o mistério de saber que fez ele durante  grande interesse. Antes de mais nada, recla-  considera “prejudicial” a acção de Nunes na
         essas décadas.                     ma uma redobrada atenção no exame das  marinharia portuguesa. Resta-me, finalmente,
           Quanto a mim, creio que se consumiu nas         Fotografia de Laura Caldas e Paulo Cintra  pedir desculpa ao benévolo leitor por ter
         suas tarefas de cosmógrafo-mor, mas que                               usado as páginas da Revista da Armada para
         estas actividades, pela sua natureza, nos                             expressar as minhas objecções relativamente
         deixaram um registo histórico escassíssimo.                           aos pareceres de dois ilustres oficiais da
         Dado que Nunes não escreveu nenhuma                                   Marinha Portuguesa que foram também emi-
         obra com o objectivo de servir aos práticos                           nentes estudiosos da marinharia nacional do
         do mar – excepção, talvez, e mesmo esta                               séc. XVI.
         questionável, para o Tratado da Sphera - a
         sua acção enquanto cosmógrafo-mor decor-                                         Prof. Doutor Henrique Leitão
         reu essencialmente em contactos pessoais,                                                Universidade de Lisboa
         conversas, propostas e discussões, exames,
         aulas, certificação de cartas e instrumentos.                         Notas
         Tudo isto são modos que deixam pouco re-                                (1) Para um resumo do impacte da sua obra, ver:
         gisto histórico. Só dispomos, por isso, de                            Henrique Leitão, “Sobre a difusão europeia da obra
                                                                               de Pedro Nunes”, Oceanos, 49 (2002) 110-128.
         algumas indicações fragmentárias, mas elas                              (2) L. de Morais e Sousa, A Sciencia náutica dos
         revelam-nos um homem em contacto próxi-                               pilotos portugueses nos séculos XV e XVI, Parte I
         mo e colaboração – não apenas em polémi-                              (Lisboa: Imprensa Nacional, 1924), p. 32. A má
         ca – com pilotos e cartógrafos.                                       vontade de Morais e Sousa para com Pedro Nunes
                                                                               está patente em muitas páginas. Por exemplo: “(...)
           Em primeiro lugar, devem considerar-se as                           gozava Pedro Nunes muita consideração e simpatia
         relações de Pedro Nunes com Martim                                    por parte do Rei e do Infante D. Luís, sendo muito
         Afonso de Sousa e D. João de Castro. É certo                          provável que pela sua qualidade de sábio, natural-
         que Afonso de Sousa e Castro eram nobres,                             mente orgulhoso do seu saber, fosse mais suportado
         não eram pilotos típicos, e que as suas                               do que estimado na côrte”. (p. 11) [itálicos meus].
                                                                               Palavras fortes, sem dúvida, mas que não estão
         relações com Nunes não são representativas                            apoiadas em qualquer testemunho conhecido,
         dos contactos do cosmógrafo com os nave-                              bem pelo contrário.
         gadores. Mas também não podem ser descar-                               (3) Luís de Albuquerque, “Pedro Nunes e os homens
         tadas. Nelas encontramos Nunes agindo                                 do mar do seu tempo”, in: A Náutica e a Ciência em
                                                                               Portugal. Notas sobre as Navegações (Lisboa: Gradiva,
         como consultor científico, esclarecendo                               1989), p. 156.
         dúvidas e incentivando a que algumas das                                (4) Tome-se, por exemplo, o trecho que abre o
         suas inovações fossem testadas no mar. A                              Tratado da Sphera – muitas vezes citado – em que
         estas indicações podemos adicionar outras.                            Nunes defende que se redijam textos científicos em
           Alonso de Santa Cruz, o famoso cosmó-                               vernáculo. Seria importante referir que, a despeito
                                                                               dessas palavras bonitas, Nunes nunca mais publicou
         grafo espanhol, informa que “estando yo en                            qualquer obra em português.
         Portugal en el año dicho [1545] el Dr. Pero                             (5) Veja-se: A. Teixeira da Mota, “Os Regimentos
         Núñez, cosmografo de aquel reino, mandó a                             do Cosmógrafo-Mor de 1559 e 1592 e as origens
         todos los maestros de hacer cartas de marear                          do ensino náutico em Portugal”, Memórias da
                                                                               Academia das Ciências de Lisboa (Classe de Ciências),
         que encogieram en las cartas que hiciesen                             13 (1969) 227-291.
         algunos golfos [...]” (7). Eis aqui uma suges-                          (6) Sousa Viterbo,  Trabalhos Náuticos dos
         tão que, embora se adivinhe a sua origem                              Portugueses. Séculos XV e XVI, reprodução facsimila-
         teórica, é eminentemente prática e revela  Estátua de Pedro Nunes no Padrão dos Descobrimentos.  da (Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda,
         Nunes directamente envolvido com a activi-                            1988), nas pp. 205; 243-244; 331-332.
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         dade de cartógrafos.               cartas feitas por Lasso. Para além disso,  Pedro Nunes. Defensão do Tratado da Rumação do
           Uma outra indicação do mesmo tipo é  mostra-nos Nunes envolvido num trabalho  Globo para a Arte de Navegar, Inedita ac rediviva
         veiculada por Lopo Homem, o qual, nuns  de colaboração com um cartógrafo de  (Coimbra: Universidade de Coimbra, 1952), p.
         conhecidos “apontamentos”, afirma que “o  renome. Dado que Nunes conhecia Lasso  xxiv.
                                                                                 (8) Veja-se: Luís de Matos, Les Portugais en France
         doutor Pero Nunez mandou fazer um padrão  pelo menos desde 1564, ano em que o  au XVIe siècle, (Coimbra: Acta Universitatis
         de navegar sobre y per rezão do effecto e  examinou, somos levados a admitir como  Conimbrigensis, 1952), pp. 318-322.
         aparencias dos euclipses do sol e da lua” (8).  plausível que tivesse trabalhado com ele  (9) Ephemerides Io. Baptistae Carelli Placentini, Ad
         Este informe revela, uma vez mais, a proximi-  desde essa data.       Annos XIX. Incipientes ab Anno Christi MDLVII. Usque
         dade com a actividade de cartógrafos e a  O próprio cargo de cosmógrafo-mor  ad Annum MDLXXV (...) Venetiis: Ex Officina
                                                                               Erasmiana, Vicentiij Valgrisij, 1557. Encontra-se na
         intenção de introduzir melhoramentos na  parece ter sido criado por causa de Pedro  Biblioteca do Museu de Marinha, 5300 Arm. 33. É
         cartografia usando técnicas astronómico-  Nunes, o que não é dizer nada pouco sobre  impossível ter a certeza absoluta de que as ano-
         -matemáticas avançadas. Lopo Homem é  a sua importância para a história da mari-  tações marginais são devidas a Nunes. Mas dado
         muito crítico acerca do resultado desta su-  nharia nacional. Pouco sabemos acerca das  que exemplar em questão apresenta marca de
                                                                               posse de Pedro Nunes e as anotações marginais
         gestão de Pedro Nunes, mas porque as cartas  origens desse cargo, é certo, mas tudo aponta  denotam competência em assuntos matemático-
         em questão não sobreviveram é difícil avaliar  para que a sua criação tenha estado associa-  -astronómicos e referem factos que correlacionam
         quem tem razão.                    da ao surgimento em Portugal de um homem  directamente com o que se sabe da vida de Nunes,
           Recentemente pudémos apurar mais um  de reputação e calibre intelectual pouco co-  parece-me difícil duvidar desta atribuição. Um estu-
         fragmento de informação que merece ser  muns. Acresce ainda que Nunes esteve segu-  do detalhado destas anotações e da sua importân-
                                                                               cia será publicado em breve.
         considerado. Num livro que pertenceu a  ramente envolvido na redacção do (perdido)  (10) Para este assunto: A. Teixeira da Mota, “Os
         Pedro Nunes encontra-se um conjunto de  regimento do cosmógrafo-mor de 1559 (10).    Regimentos do Cosmógrafo-Mor (...)”, op. cit.
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