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A MARINHA DE D. JOÃO III (2)



                A conjuntura europeia do princípio
                 A conjuntura europeia do princípio

                  do reinado: Francisco I e Carlos V
                   do reinado: Francisco I e Carlos V


              erá interessante observar com atenção  Imperador e o da irmã deste, D. Catarina,  era a cláusula do testamento de Adão, que
              o conjunto de factos e circunstâncias  com D. João III marcaram toda a política  o afastava da partilha do mundo decidida
         Seuropeus contemporâneos da acla-  ibérica do século XVI.             entre portugueses e “espanhóis”. Uma per-
         mação de D. João III em S. Domingos, em   D. João III sobe ao trono com a noção clara  gunta que, naturalmente, não tinha resposta.
         19 de Dezembro de 1521.            das dificuldades que este conflito lhe vai tra-  Assim foi permitindo que súbditos franceses
           Lembremo-nos que Carlos V,                                                   fossem estendendo o seu raio de
         com o título de Carlos I era rei de                                            acção marítimo pelo Atlântico e
         Leão, Castela, Aragão e Navarra,                                               até pelo Índico, sendo notáveis
         concorrendo ao título imperial                                                 as intervenções dos corsários nor-
         que obteve em 1519. Entretanto,                                                mandos sedeados, sobretudo, em
         em 1520 saiu de Espanha para                                                   Ruão. Esta postura ameaçava o
         tratar de assuntos que tinham                                                  comércio ultramarino português,
         a ver com as suas províncias do                                                de uma forma geral, e, concreta-
         norte, aproveitando para condu-                                                mente, a presença no Brasil, onde
         zir uma importante acção militar                                               os franceses chegaram muito cedo
         que subme teu ao seu poder toda                                                e onde estabeleceram posições fi-
         a Lombardia e o ducado de Milão.                                               xas em terra.
         Na mesma altura, o car deal Adria-                                              A pirataria francesa no Atlânti-
         no de Utrecht foi eleito papa, com                                             co – no que a Portugal dizia res-
         o título de Adriano VI, compondo                                               peito – afrontava os principais
         mais um dos elementos essen-                                                   portos do continente, as ilhas
         ciais para o projecto de domínio                                               atlânticas, a costa ocidental afri-
         de toda a Europa, cujo prin cipal                                              cana e o Brasil, registando-se al-
         obstáculo era apenas a oposição                                                gumas tentativas de alcançar o
         guerreira de Francis co I de Fran-                                             Índico, com um sucesso ainda
         ça. Em 1522 fez ainda um tratado                                               precário. E em 1521 “foy el Rey
         com Henrique VIII de Inglaterra,                                               auisado [...] que um João vareza-
         selado com uma promessa de                                                     no Florentino de nação se offere-
         que casaria com a sua jovem fi-                                                 cera a el Rey Francisco para des-
         lha, Maria, (na altura com seis                                                cubrir no Oriente outros reynos
         anos) e com um complemento                                                     que os Portugueses não tinham
         secreto do texto público preven-                                               descubertos”. Segundo a cróni-
         do que os dois países atacariam                                                ca de D. João III, de Francisco de
         e conquistariam a França, a divi-                                              Andrada, este e outros assuntos
         dir entre si. Entretanto, em Abril   Isabel de Portugal.                      relacionados com os danos do
                                    Tiziano – Museu do Prado.
         de 1521 (poucos meses antes da                                                corso francês, motivaram o en-
         aclamação de D. João III), Francisco I decla-  zer, e da delicadeza com que tem de abordar  vio em 1522 de uma embaixada ao rei de
         rou guerra a Carlos V, desenvolvendo várias  as relações com a França e com o Império.  França, chefiada por João da Silveira. O seu
         campanhas que passaram pela intervenção  D. Manuel manteve uma permanente política  objectivo principal era tentar acabar com o
         em Itália, após um acordo político com o  de aproximação com os reinos ibéricos, com  flagelo da pirataria entre dois países que não
         novo papa, Clemen te VII. Foi derrotado e  quem conseguiu manter-se em paz, apesar  estavam em guerra, “antes auia paz e amiza-
         aprisionado em Pavia, no ano de 1525, as-  de pequenas perturbações pontuais, como  de antiga”. Na mesma altura, Francisco I já
         sinando um acordo penoso que não viria  era o recente caso da viagem de Fernão de  tinha enviado, também, a sua embaixada a
         a cumprir e que Carlos também não teve  Magalhães, e essa era uma conduta que de-  Portugal, mas para que se acordasse no ca-
         força para impor. Os dois reinos estavam  veria ser continuada. A França levantava, no  samento de uma filha do rei francês com o
         esgotados financeiramente e o futuro da  entanto, outro tipo de problemas. O primei-  próprio D. João III. E é interessante observar
         contenda (intermi nável) viria a depender  ro deles tinha a ver com a impossibilidade de  como ambos os monarcas foram protelando
         da recu peração económica de cada um. É  agradar, simultaneamente, ao Imperador e a  as suas decisões sobre qualquer dos assuntos
         neste contexto de uma vitória inconclusiva  Francisco I, obrigando a manobras diplomá-  que estavam em discussão: D. João III não
         contra a França e de um domínio precário  ticas que, ora seguiam uma prática dilatória  queria casar com a princesa francesa (que
         no norte de Itália, que o imperador desiste  das decisões delicadas, ora apelavam à con-  acabou por falecer em 1522); e Francisco I ia
         da promessa de casamento com a filha de  córdia do espaço cristão, assente em valores  falando de paz, mas ia alimentando a guerra
         Henri que VIII e desposa Isabel de Portugal,  de carácter genérico que pouco adiantavam.  dos corsários normandos. A pirataria france-
         irmã de D. João III. Consolidava, desta for-  Mas a questão fundamental, a meu ver, pren-  sa foi um flagelo que se prolongou ao longo
         ma, um outro tipo de aliança política vi rada  dia-se com a inaceitação, por parte do rei de  do século XVI mas, sobre isso, teremos oca-
         claramente para o Atlântico, entendido como  França, do princípio de mare clausum decor-  sião de voltar a falar.
         a via de acesso a um espaço extra-euro peu,  rente do Tratado de Tordesilhas, que o impe-             Z
         com uma componente portuguesa e outra  dia de ter acesso às riquezas ultramarinas dos    J. Semedo de Matos
         “espanhola”. O casamento de Isabel com o  reinos ibéricos. Francisco I perguntava qual            CFR FZ

         16  JUNHO 2005 U REVISTA DA ARMADA
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