Page 344 - Revista da Armada
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Bicentenário da Batalha de Trafalgar
Bicentenário da Batalha de Trafalgar
Nelson e Napoleão: a luta pelo domínio do mar
O ameaça que isso constituía sobre o Canal da
primeiro grande problema com que nente do humano no meio do divino. É esta, te e a respectiva costa a leste da França, com a
nos deparamos ao abordar o estudo aliás, a função do historiador e a sua preocu-
da Batalha de Trafalgar, e todas as ac-
pação permanente: encontrar e recompor os Mancha e sobre a Inglaterra. Era, digamos a
ções navais que a precederam e sucederam, comportamentos humanos, como forma de gota que fizera transbordar o copo. E uma gota
integradas na endémica guerra entre a Grã- aprofundar o conhecimento do próprio Ho- bem pesada, deve dizer-se.
-Bretanha e os aliados (França e Espanha), é mem. Ou não fosse a História uma das mais Nesse ano de 1793, para derrotar a França,
conseguir discernir a verdade histórica, que importantes Ciências Humanas. organizou-se uma imensa aliança que englo-
se nos depara encapuçada numa teia de mitos bou Rússia, Prússia, Áustria, Piemonte (que
de diversa ordem, de que a figura do Vice-Al- INGLESES CONTRA FRANCESES englobava a Sardenha), Nápoles, Espanha e
mirante Nelson é, sem dúvida o maior de to- Portugal. Diria que toda a Europa se prepa-
dos. Quando, em Novembro de 1805, chegou A guerra entre a Grã Bretanha e a França, rou para esmagar a Revolução, mas um a um
a Inglaterra a notícia do desfecho da célebre ao longo do século XVIII é algo de endémico e todos foram capitulando perante os soldados
batalha, com a vitória dos britânicos e franceses, no meio dos quais florescia
a morte de Nelson, os pormenores ro- outro mito guerreiro chamado Napo-
manceados sobre a sua pessoa e o re- leão Bonaparte. Em 1797 era a própria
lato pormenorizado (fantasiado?) dos Inglaterra que pensava ser impossível
últimos momentos, tiveram um impac- vencer a guerra, propondo-se abdicar
te e uma divulgação pública muito su- de todos os objectivos porque a decla-
perior ao próprio triunfo, e às suas pos- rara em 1793, para obter a paz. Nessa
síveis consequências, no conflito que altura a França achava-se com força e
opunha os ingleses às tropas de Na- não aceitou as condições propostas,
poleão. Talvez que o próprio país não exigindo uma rendição que os britâni-
tivesse consciência perfeita do resulta- cos não podiam aceitar. Aliás, esta ati-
do, que constituiu um ponto de parti- tude (de ingleses e franceses) mostra
da para um longo período de domínio bem a dificuldade dos actores de qual-
incontestado dos mares. Apressou-se, quer conflito em compreender toda a
no entanto, em compor e alimentar um dimensão do mesmo.
mito de contornos intemporais, que se Cerca de um século depois dos acon-
transformou num símbolo do sucesso tecimentos, o conhecido estratega nor-
britânico. Nelson emerge da bruma e te-americano Alfred Mahan (cujas teo-
caminha sobre as águas até ao tom- rias fizeram escola na NATO ao longo
badilho da “Victory” para derrotar os do século XX, constituindo, ainda hoje,
inimigos da Grã-Bretanha, onde quer uma referência importante nos estudos
que eles estejam e em qualquer época: estratégicos) faz uma análise detalhada
é o primeiro e o último “oficial e cava- dos acontecimentos, definindo as cir-
lheiro”, com um carácter que desco- cunstâncias de cada uma das potências
nhece temores humanos e um corpo em presença, para concluir que o do-
indiferente a todos os golpes de espa- mínio do mar foi o elemento chave do
da. Nem os ferimentos de guerra con- sucesso inglês. Mahan – como é sabido
seguem desfigurar a sua imagem para – era um particular admirador da His-
a posteridade. Não é um herói grego, O jovem Nelson. tória Britânica e, muito especialmente,
mas é um herói clássico. Na sua vida épica permanente, tendo dois momentos particular- da figura de Nelson, de quem fez uma exce-
não falta sequer o amor ilícito e impossível mente violentos durante a chamada “Guerra lente biografia. Não é difícil perceber que a
de uma Lady Hamilton, a mulher do embai- dos Sete Anos” (1755-1763) e durante a Guer- Grã-Bretanha é a musa inspiradora da sua
xador inglês no reino de Nápoles, de quem ra de Independência dos Estados Unidos, por análise sobre Poder Naval, permitindo-me
teve duas filhas. O Nelson de que os ingleses causa da ajuda francesa aos rebeldes america- salientar dois aspectos que, certamente, não
falaram nos últimos dois séculos é muito mais nos. Mas nunca esse conflito se tornou tão de- lhe passaram despercebidos: o primeiro é o
do que um excelente marinheiro, um grande cisivo, para ambos os países, como na década julgamento que faz do carácter do britâni-
comandante e um extraordinário vice-almi- de noventa do século XVIII e nos primeiros co, disponível – mais do que qualquer outro
rante: é um dos símbolos mais importantes anos do seguinte. A Inglaterra acompanhou – para suportar pacientemente as agruras do
da história britânica recente; um padrão de com grande apreensão todos os acontecimen- mar e da vida a bordo; e a segunda é a ânsia
comportamento na construção do Império; tos da Revolução Francesa, e a condenação à permanente dos ingleses (e particularmente
um modelo inspirador para todos os jovens morte da família real foi vista como um acto de Nelson), ao longo desta guerra, em pro-
oficiais que tentaram a sua sorte nos tomba- bárbaro, que exasperou todos os ódios contra curarem e combaterem as esquadras inimi-
dilhos dos navios de Sua Majestade. Mas – si- a nova República. Contudo, a razão formal da gas, confiando que na sua destruição estava
multaneamente – perdeu o seu carácter hu- guerra teve a ver com a invasão francesa dos a chave da vitória (sobrevivência) de Ingla-
mano e real, transformando-se num mito, e a Países Baixos, e a deposição do soberano da terra. Estou a simplificar um pouco a análise
história que se fez da sua vida submeteu -se a casa de Orange (que foi executado). Para além de Mahan, mas apenas para salientar o que
exigências próprias que, com frequência, sa- dos tratados que obrigavam ao apoio britâni- foi uma constante desta guerra, onde o Po-
crificaram a verdade. Este facto não lhe re tira co, esta ocupação prejudicava efectivamente der Naval francês acabou por ser destruído
em nada o seu valor – que é indesmentível – os seus interesses, na medida em que ficavam ou imobilizado, permitindo a recuperação in-
mas obriga a um cuidado especial na análise na posse do seu ancestral inimigo as linhas glesa e a asfixia da França que conduziram à
dos relatos históricos, numa busca perma- fluviais de acesso da Europa ao Mar do Nor- derrota e à queda de Napoleão.
18 NOVEMBRO 2005 U REVISTA DA ARMADA