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Bicentenário da Batalha de Trafalgar
           Bicentenário da Batalha de Trafalgar

                      Nelson e Napoleão: a luta pelo domínio do mar

         O                                                                     ameaça que isso constituía sobre o Canal da
               primeiro grande problema com que  nente do humano no meio do divino. É esta,  te e a respectiva costa a leste da França, com a
               nos deparamos ao abordar o estudo  aliás, a função do historiador e a sua preocu-
               da Batalha de Trafalgar, e todas as ac-
                                            pação permanente: encontrar e recompor os  Mancha e sobre a Inglaterra. Era, digamos a
         ções navais que a precederam e sucederam,  comportamentos humanos, como forma de  gota que fizera transbordar o copo. E uma gota
         integradas na endémica guerra entre a Grã-  aprofundar o conhecimento do próprio Ho-  bem pesada, deve dizer-se.
         -Bretanha e os aliados (França e Espanha), é  mem. Ou não fosse a História uma das mais   Nesse ano de 1793, para derrotar a França,
         conseguir discernir a verdade histórica, que  importantes Ciências Humanas.  organizou-se uma imensa aliança que englo-
         se nos depara encapuçada numa teia de mitos                           bou Rússia, Prússia, Áustria, Piemonte (que
         de diversa ordem, de que a figura do Vice-Al- INGLESES CONTRA FRANCESES  englobava a Sardenha), Nápoles, Espanha e
         mirante Nelson é, sem dúvida o maior de to-                           Portugal. Diria que toda a Europa se prepa-
         dos. Quando, em Novembro de 1805, chegou   A guerra entre a Grã Bretanha e a França,  rou para esmagar a Revolução, mas um a um
         a Inglaterra a notícia do desfecho da célebre  ao longo do século XVIII é algo de endémico e  todos foram capitulando perante os soldados
         batalha, com a vitória dos britânicos e                                    franceses, no meio dos quais florescia
         a morte de Nelson, os pormenores ro-                                       outro mito guerreiro chamado Napo-
         manceados sobre a sua pessoa e o re-                                       leão Bonaparte. Em 1797 era a própria
         lato pormenorizado (fantasiado?)  dos                                      Inglaterra que pensava ser impossível
         últimos momentos, tiveram um impac-                                        vencer a guerra, propondo-se abdicar
         te e uma divulgação pública muito su-                                      de todos os objectivos porque a decla-
         perior ao próprio triunfo, e às suas pos-                                  rara em 1793, para obter a paz. Nessa
         síveis consequências, no conflito que                                       altura a França achava-se com força e
         opunha os ingleses às tropas de Na-                                        não aceitou as condições propostas,
         poleão. Talvez que o próprio país não                                      exigindo uma rendição que os britâni-
         tivesse consciência perfeita do resulta-                                   cos não podiam aceitar. Aliás, esta ati-
         do, que constituiu um ponto de parti-                                      tude (de ingleses e franceses) mostra
         da para um longo período de domínio                                        bem a dificuldade dos actores de qual-
         incontestado dos mares. Apressou-se,                                       quer conflito em compreender toda a
         no entanto, em compor e alimentar um                                       dimensão do mesmo.
         mito de contornos intemporais, que se                                        Cerca de um século depois dos acon-
         transformou num símbolo do sucesso                                         tecimentos, o conhecido estratega nor-
         britânico. Nelson emerge da bruma e                                        te-americano Alfred Mahan (cujas teo-
         caminha sobre as águas até ao tom-                                         rias fizeram escola na NATO ao longo
         badilho da “Victory” para derrotar os                                      do século XX, constituindo, ainda hoje,
         inimigos da Grã-Bretanha, onde quer                                        uma referência importante nos estudos
         que eles estejam e em qualquer época:                                      estratégicos) faz uma análise detalhada
         é o primeiro e o último “oficial e cava-                                    dos acontecimentos, definindo as cir-
         lheiro”, com um carácter que desco-                                        cunstâncias de cada uma das potências
         nhece temores humanos e um corpo                                           em presença, para concluir que o do-
         indiferente a todos os golpes de espa-                                     mínio do mar foi o elemento chave do
         da. Nem os ferimentos de guerra con-                                       sucesso inglês. Mahan – como é sabido
         seguem desfigurar a sua imagem para                                         – era um particular admirador da His-
         a posteridade. Não é um herói grego,   O jovem Nelson.                     tória Britânica e, muito especialmente,
         mas é um herói clássico. Na sua vida épica  permanente, tendo dois momentos particular-  da figura de Nelson, de quem fez uma exce-
         não falta sequer o amor ilícito e impossível  mente violentos durante a chamada “Guerra  lente biografia. Não é difícil perceber que a
         de uma Lady Hamilton, a mulher do embai-  dos Sete Anos” (1755-1763) e durante a Guer-  Grã-Bretanha é a musa inspiradora da sua
         xador inglês no reino de Nápoles, de quem  ra de Independência dos Estados Unidos, por  análise sobre Poder Naval, permitindo-me
         teve duas filhas. O Nelson de que os ingleses  causa da ajuda francesa aos rebeldes america-  salientar dois aspectos que, certamente, não
         falaram nos últimos dois séculos é muito mais  nos. Mas nunca esse conflito se tornou tão de-  lhe passaram despercebidos: o primeiro é o
         do que um excelente marinheiro, um grande  cisivo, para ambos os países, como na década  julgamento que faz do carácter do britâni-
         comandante e um extraordinário vice-almi-  de noventa do século XVIII e nos primeiros  co, disponível – mais do que qualquer outro
         rante: é um dos símbolos mais importantes  anos do seguinte. A Inglaterra acompanhou  – para suportar pacientemente as agruras do
         da história britânica recente; um padrão de  com grande apreensão todos os acontecimen-  mar e da vida a bordo; e a segunda é a ânsia
         comportamento na construção do Império;  tos da Revolução Francesa, e a condenação à  permanente dos ingleses (e particularmente
         um modelo inspirador para todos os jovens  morte da família real foi vista como um acto  de Nelson), ao longo desta guerra, em pro-
         oficiais que tentaram a sua sorte nos tomba-  bárbaro, que exasperou todos os ódios contra  curarem e combaterem as esquadras inimi-
         dilhos dos navios de Sua Majestade. Mas – si-  a nova República. Contudo, a razão formal da  gas, confiando que na sua destruição estava
         multaneamente – perdeu o seu carácter hu-  guerra teve a ver com a invasão francesa dos  a chave da vitória (sobrevivência) de Ingla-
         mano e real, transformando-se num mito, e a  Países Baixos, e a deposição do soberano da  terra. Estou a simplificar um pouco a análise
         história que se fez da sua vida submeteu -se a  casa de Orange (que foi executado). Para além  de Mahan, mas apenas para salientar o que
         exigências próprias que, com frequência, sa-  dos tratados que obrigavam ao apoio britâni-  foi uma constante desta guerra, onde o Po-
         crificaram a verdade. Este facto não lhe re tira  co, esta ocupação prejudicava efectivamente  der Naval francês acabou por ser destruído
         em nada o seu valor – que é indesmentível –  os seus interesses, na medida em que ficavam  ou imobilizado, permitindo a recuperação in-
         mas obriga a um cuidado especial na análise  na posse do seu ancestral inimigo as linhas  glesa e a asfixia da França que conduziram à
         dos relatos históricos, numa busca perma-  fluviais de acesso da Europa ao Mar do Nor-  derrota e à queda de Napoleão.

         18  NOVEMBRO 2005 U REVISTA DA ARMADA
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