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A MARINHA DE D. JOÃO III (20)



             O “Diário” de Pêro Lopes de Sousa
              O “Diário” de Pêro Lopes de Sousa


               ão podem entender-se as ameaças  dos quais comandado por seu irmão Pêro   De acordo com o “Diário” no último dia
               estrangeiras ao comércio brasileiro  Lopes de Sousa. E é a este segundo fidalgo  de Janeiro, estavam por perto do Cabo de
         Nemergente e a política de D. João III  português que se deve a elaboração de um  Santo Agostinho (Brasil) e avistaram um
         para a sua protecção e garantia de monopó-  “diário” da viagem, cujo original permane-  navio francês, cuja tripulação se pôs em
         lio, sem observar a situação internacional eu-  ce desconhecido, mas de que existe, na Bi-  fuga para terra. “Tinha muita artelheria e
         ropeia, nomeadamente no que diz respeito a  blioteca da Ajuda, uma cópia escrita ainda  pólvora e estava toda abarrotada de brasil
         dois dos seus principais protagonistas, como  no século XVI. O manuscrito tem várias la-  [pau brasil]” – diz o autor. Tomaram mais
         eram Francisco I, de França, e Carlos V, im-  cunas e incoerências, como acontece sem-  dois navios nas mesmas circunstâncias, de
         perador do Sacro Império, senhor                                              que um deles foi queimado, ou-
         de Castela e Aragão e de vastos                                               tro integrado na esquadra, com
         outros territórios no eixo central                                            o nome de «Santa Maria das
         europeu, entre a Itália e a Flan-                                             Candeias», e o terceiro enviado
         dres. O conflito entre estes dois                                              para o reino, sob o comando de
         poderosos foi, essencialmente,                                                João de Sousa, carregado com
         continental, mas teve pequenas                                                as mercadorias aprisionadas e
         variantes marítimas que, nalguns                                              os franceses cativos.
         casos, afectaram os interesses ul-                                              A missão da esquadra previa,
         tramarinos portugueses. O rei                                                 contudo, a exploração da costa
         francês recusava aceitar a divisão                                            para o sul, de forma que parti-
         Atlântica do Tratado de Tordesi-                                              ram para o sul no dia 1 de Março,
         lhas, que o afastava de uma par-                                              detendo-se no Rio de Janeiro por
         tilha do mundo, e, ironicamente,                                              algum tempo. Aí foram construí-
         perguntava que cláusula de um                                                 dos “dous bergantins de 15 ban-
         eventual “Testamento de Adão”                                                 cos” que viriam a revelar-se im-
         podia fundamentar tal acto. Por-                                              portantes para a exploração das
         tugal, só no mar podia colocar-se                                             barras e rios do sul. Foi num de-
         ao nível de adversários deste ní-                                             les que o próprio Pêro Lopes en-
         vel, e fazia-o compensando a sua                                              trou na barra do Prata, explorou
         inferioridade em meios materiais                                              o Rio da Prata, entrando pelo Pa-
         e humanos com o saber geográfi-                                                raná e Uruguai. Faltava-lhes ain-
         co e com a capacidade de navegar                                              da cumprir uma última missão
         até longínquas paragens: fazia                                                que nos parece ter sido definida
         valer as componentes do Poder                                                 antecipadamente por ordem de
         Naval que lhe eram peculiares.                                                D. João III: criar um núcleo po-
         D. João III apostou na aliança com                                            pulacional que sustentasse uma
         o vizinho ibérico, procurando                                                 colónia portuguesa na costa do
         não hostilizar a França, até ao li-                                           Brasil. S. Vicente foi o local defi-
         mite do possível. Francisco I, con-                                           nido, e ali construíram uma for-
         tudo, foi muito mais agressivo e,                                             taleza, uma igreja e um conjun-
         à medida que se foi apercebendo   Carta do complexo insular de São Vicente, onde foi fundada a primeira povoação   to de edifícios que sustentavam
         que a aliança peninsular era irre-  portuguesa no Brasil, por Martin Afonso de Sousa.  o sistema administrativo do que
         versível (consolidada por dois casamentos  pre nestas circunstâncias, mas não deixa de  viria a ser a primeira capitania donatária,
         ao mais alto nível), a sua hostilidade fez-se  nos fornecer múltiplas informações sobre a  organizada à imagem das que já existiam
         sentir, sobretudo, no mar. Tive ocasião de o  campanha naval que decorreu entre o final  na Madeira e Açores. O texto é muito escas-
         referir, quando abordei o problema da pira-  de 1530 e meados de 1533.   so na sua parte final, dificultando a melhor
         taria e do corso na costa portuguesa e no Gol-  Começa o texto com o seguinte parágra-  interpretação do que sucedeu entretanto,
         fo da Guiné, mas é preciso acrescentar que  fo: «Na era de mil e quinhentos e 30, sába-  mas permite decifrar que Martim Afonso
         a presença francesa se estendeu ao Brasil,  do, 3 dias do mês de Dezembro, parti desta  ficou em S. Vicente, tratando da constru-
         ainda no princípio do século XVI, assumin-  cidade de Lisboa, debaxo da capitania de  ção da vila e da administração da colónia,
         do uma proporção preocupante na década  Martim Afonso de Sousa, meu irmão, que  enquanto o irmão partiu para o norte. Pas-
         de vinte e merecendo uma atenção especial  ia por capitão de uma armada e governa-  sou pelo Rio de Janeiro, Baía e Pernambuco,
         por parte do rei português.        dor da terra do Brasil». Pouco mais adiante,  antes de regressar a Portugal, aportando a
           São de realçar as viagens ao Brasil de Cris-  o texto regista as tomadas de altura do sol  Faro pelos finais de 1532 ou princípios de
         tóvão Jacques, na primeira década do rei-  nos dias 5, 6 e 7, seguindo-se informações de  1533, com mais franceses presos. Provavel-
         nado – conseguindo significativas vitórias  natureza náutica como o estado do mar, do  mente a ele se deve a tomada e destruição
         contra os intrusos – mas a ameaça exigia me-  vento, do tipo de governo, manobras efec-  de uma feitoria que estes tinham construí-
         didas mais enérgicas e, sobretudo, um plano  tuadas, ocorrências diversas e informações  do, entretanto, em Pernambuco. Martim
         coerente que permitisse o controlo efectivo  geográficas com um pormenor pouco vulgar  Afonso de Sousa chegaria a Lisboa por mea-
         dos mares brasileiros. Foi nesse sentido que  na época. Não temos uma informação mui-  dos desse ano.
         o rei ordenou a expedição de Martim Afonso  to grande sobre Pêro Lopes de Sousa, mas o                Z
         de Sousa, saída de Lisboa a 3 de Dezembro  texto revela-o como um homem experiente       J. Semedo de Matos
         de 1530 e composta por cinco navios, um  e arguto em questões náuticas.                           CFR FZ

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