Page 13 - Revista da Armada
P. 13

Uma estratégia para o Índico no século XVI
                 O «Feito de Goa» quinhentos anos depois

No ano de 1510, Afonso de Albuquer-               meida constitui o mais importante documento    deveria ser feito e que meios ali deveriam fi-
         que decidiu-se pela conquista de Goa,    para entender a estratégia régia para o Índi-  car. Seguem-se indicações para ir a Quíloa e
         iniciando um conjunto de manobras        co, e ele não fala de Goa, servindo como ar-   sujeitar o seu soberano à tutela dos portugue-
que procuraram dissimular as suas verda- gumento para dizer que a sua conquista não ses, a bem ou a mal. Dali seguiriam “um par
deiras intenções, escondendo-as ao inimigo                                                       de barinéis” até ao Cabo Guardafui, para vi-
e tudo fazendo para que não fossem possí-                                                        giarem o movimento de navios, mas sem en-
veis as fugas de informação. Foi, certamente,                                                    trarem no Mar Vermelho: apenas atacariam
uma das acções mais notáveis do Grande Ca-                                                       os navios de fraco poder militar, que não per-
pitão e, sobretudo, a que assumiu consequên-                                                     tencessem a Melinde, a Cananor e a Cochim,
cias estruturantes de maior dimensão para a                                                      porque eram amigos dos portugueses. Mas,
orgânica do poder da coroa de Portugal no                                                        logo que estivessem resolvidos os assuntos de
Oriente. Na verdade os portugueses esta-                                                         Sofala e Quíloa, aArmada devia seguir para a
vam no Índico há cerca de 12 anos – 12 anos                                                      Índia, em direcção a Angediva, onde deveria
de guerra constante – e, pela primeira vez,                                                      ser feita uma fortaleza.
lançavam uma operação para conquistar um                                                         As instruções recomendam que o vice-rei
território que deveria passar para a sua juris-                                                  vá a terra, com um conjunto de outros fidal-
dição absoluta.                                                                                  gos, para procederem à escolha do local, que
Goa não era uma testa-de-ponte para a con-                                                       deveria ser em local favorável, com um ponto
quista da Índia ou para a abertura de um ter-                                                    de recolha de água e, se possível, acesso a um
ritório português no Indostão, mas teve uma                                                      desembarcadouro protegido.Ali seriam cons-
dinâmica própria que não pode deixar de ser                                                      truídas duas galés, para as quais ia madeira
observada, porque afrontou potências conti-                                                      preparada em Lisboa, e ficariam outros navios
nentais muito poderosas que a iriam ameaçar                                                      durante a monção, escolhendo-os de entre os
a partir do interior, com exércitos terrestres a                                                 mais ligeiros que não fossem necessários para
actuar com uma lógica diferente dos combates                                                     outras operações. Só depois de despachada a
navais e operações anfíbias, que tinham sido o                                                   carga de pimenta em Cochim, e mandada a
quotidiano da lusa gente, nos anos anteriores.                                                   Armada de regresso ao reino, o vice-rei deve-
Como sempre aconteceu com os portugueses,                                                        ria ir ao Mar Vermelho, procurando um local
a posse de Goa resultou de equilíbrios e alian-                                                  seguro para construir, também, uma fortaleza
ças, feitas no mar e em terra, cujos executores                                                  que abrigasse os navios necessários para ga-
foram os responsáveis pelo governo da Ín-                                                        rantir o controlo do que se sabia ser a princi-
dia, ao longo dos tempos. Alianças que estão                                                     pal passagem de mercadorias, em direcção ao
presentes no próprio acto da conquista, como      Afonso de Albuquerque.                         coração do Islão. Ou seja, não restam dúvidas
seria de adivinhar e como tiveram ocasião de      Museu Nacional de Arte Antiga.                 que o documento foi minuciosamente pen-

fazer notar alguns historiadores. Aliás, esta estava nos propósitos da coroa, contestando sado e elaborado, revelando uma estratégia
preocupação do equilíbrio que obriga a gerir a legitimidade da decisão de Albuquerque. É com vista ao domínio do movimento maríti-
a própria violência, só não é visível quando estreita esta visão do Regimento, ao alegar os mo do Índico Ocidental, especialmente aquele
os contextos não são analisados em todas as detalhes de algumas instruções e concluin- que vinha em busca do ouro de Sofala e o que
suas dimensões, dando prima-                                                                     passava pelo Malabar e se diri-
zia a exaltações oníricas que têm                                                                gia ao Mar Vermelho. E repare-
objectivos exteriores à Historia                                                                 -se no pormenor da construção
e são feitas da mesma massa de                                                                   da fortaleza em Angediva, com
todos os tempos, como é bem                                                                      as condições necessárias para
de ver. Goa portuguesa resulta,                                                                  controlar as rotas que passavam
portanto, de um objectivo e de                                                                   em frente da costa Hindustânica,
um contexto: um objectivo defi-                                                                  num sentido ou no outro, dis-
nido pela coroa de Portugal em                                                                   pondo já de navios de remo, que
relação ao Índico, muito claro no                                                                se revelariam importantíssimos
regimento dado por D. Manuel                                                                     nas décadas seguintes, e cujos
a D. Francisco de Almeida em                                                                     efectivos foram sucessivamen-
Março de 1505, e de um contexto                                                                  te reforçados, aumentando em
próprio da situação política en-                                                                 número, tonelagem e poder de
tre os sultanatos do Decão e do                                                                  fogo, até se tornarem nos mais
grande reino do Vijayanagar.                                                                     importantes meios de combate
                                                                                                 para aquela região.
                                                                                                   Quer isto dizer que, não ha-
Goa e o projecto                   Território de Goa.                                            vendo instruções específicas
manuelino                          Itinerário, Viagem ou Navegação – Jan Huygen Van Linschoten.  para atacar e ocupar Goa, há

E começo por referir o objectivo da coroa do pela impossibilidade de alternativas ou uma ideia precisa sobre a necessidade de uma
de Portugal porque ele parece ser sistema- de outras iniciativas. D. Manuel recomenda base – à dimensão das capacidades portugue-
ticamente esquecido e ajuda à não compre- explicitamente que se faça uma fortaleza em sas daquela época – sobre as rotas que seguem
ensão do verdadeiro significado de Goa. Na Sofala, nomeando Pêro de Anaya para seu para o norte e para o Mar Vermelho, vindas
verdade, o regimento de D. Francisco de Al- capitão, com ordens precisas sobre como isso do Extremo Oriente, de Ceilão ou dos portos

                                                                                                 Revista da aRmada • JULHo 2010 13
   8   9   10   11   12   13   14   15   16   17   18