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A MARINHA DE D. SEBASTIÃO (23)
Projecto Atlântico
Nos dois números anteriores da
“Marinha de D. Sebastião”, debru- era diagnosticado – que teria pouco tempo D. Sebastião entendia todas estas refor-
cei-me sobre as condições da distri- de vida, preferiu usá-la da forma que acre- mas como um processo necessário para en-
ditava ser do agrado divino, em vez de se frentar uma ameaça que se previa crescente
buição do poder na Península Ibérica e na conformar numa agonia deslizante e sem no Mediterrâneo e para a qual alertavam os
Europa, nas tensões entre os reinos com inte- brilho. Suponho ser nesta dualidade, entre principais reinos católicos e o próprio Papa.
resses no Mediterrâneo e no Atlântico e nos a normalidade pálida e o impulso heróico, O avanço de Selim II para a ocupação de
jogos entre os diferentes soberanos. De igual numa alternância descontrolada e de su- Chipre e a crescente influência dos turcos
forma procurei fazer um esboço psicológico petões, que se explicam actos imprudentes no Norte de África revelavam-se uma ame-
do jovem rei D. Sebastião, no quadro da sua e escritos perturbantes, intercalados com aça cada vez mais premente, que tinha de
época, na condição de jovem responsável medidas administrativas de enorme di- ser contida tão depressa quanto possível.
pela governação, sujeito às pressões dos mensão e efeito. Algumas delas esperadas Sabemos como o Papa Pio V constituiu a
grupos de influência e inserido num qua- há anos, como era a reorganização das es- Santa Liga, cujo objectivo principal era fazer
dro complexo, próprio da Época Moderna. truturas militares e de defesa do reino, em frente ao poder de Istambul, e D. Sebastião
O estudo da História obriga a interromper terra e no mar.
recebeu a mesma Bula papal, chegando a
A ele se deve a criação das companhias prometer a cedência de 10 navios de remo
o desfilar vertiginoso dos factos com estas
pequenas “pausas” de reflexão, sob pena de de ordenança, cujo regimento não era mais para o Mediterrâneo, mas outras necessida-
se perder de vista a dimensão humana dos do que uma forma de enquadrar todos os des não permitiram o cumprimento desta
personagens e falsificar os re- promessa. As atenções do rei
sultados. D. Sebastião foi uma estavam mais a Ocidente, onde
pessoa complexa, marcada por esse poder que crescia no espa-
um conjunto de acontecimen- ço marítimo interior alastrava
tos da sua juventude que lhe também pelo Norte de África
marcaram o carácter e, sobretu- e chegava até Tunes, ameaçan-
do o seu enquadramento do xa- do os equilíbrios em Marrocos.
drez político português. Referi As suas motivações inclina-
em revistas anteriores o alinha- vam-se para retomar uma via
mento entre a avó e o tio, que interrompida com o abando-
tutelaram a sua educação, mas no das praças no reinado de
ele próprio se blindou dentro D. João III, promovendo um
de uma couraça própria, pro- regresso ao continente africa-
curando reagir à influência de no. Tomou iniciativas várias,
Filipe II de Espanha. A não acei- com o objectivo de ele próprio
tação da noiva que o patriarca se deslocar a África o que con-
Habsburgo lhe reservara foi cretizou em duas expedições
uma decisão por reacção con- de que darei conta numa fu-
tra uma interferência externa, Mapa de Fernão Vaz Dourado (1570): nele se podem ver as posições tura revista. O projecto do rei
e muitas outras tiveram uma portuguesas no Norte de África, assinaladas pelas respectivas bandeiras era, contudo, mais vasto do que
origem semelhante: foram re- (Ceuta, Tânger e Mazagão), à data da feitura do Mapa. uma simples campanha contra
acções a qualquer coisa que su- os mouros. É bastante evidente
punha querem impor-lhe e não determina- homens válidos do país, organizando-os que previa uma política atlântica com um
ções positivas, com um sentido construtivo. em unidades territoriais, devidamente co- cariz mais abrangente e muito diferente do
Esta foi uma das suas limitações políticas. mandadas e integradas numa estrutura que vinha sendo seguido até aí. Preparou-
Importadizerqueoproblemadocasamen- nacional, com regras para a realização de -se para enquadrar um conjunto de posi-
to se vai arrastar até à sua morte sem solu- exercícios e demonstrações militares. Houve ções estratégicas decisivas numa estrutura
ção, havendo sinais claros de que a atitude de quem visse nesta ideia mais um desvairo do defensiva das rotas do Atlântico Sul e do
D. Sebastião está associada a uma obses- rei, que só pensava na guerra e nas virtu- acesso a Lisboa, simultaneamente reforçar
são religiosa de castidade que se expressa des ascéticas do guerreiro, mas a medida a presença na região da Guiné e da Mina
numa misoginia evidente, mas também tem uma dimensão política extraordinária, e encetar a colonização da costa ocidental
a um misterioso problema de saúde, hoje enquadrando-se no que foi uma verdadei- africana, a sul do rio Zaire (Angola), nos
muito difícil de diagnosticar. Muita coisa se ra revolução militar europeia. O “cavaleiro mesmos moldes em que fora feita no Brasil.
tem dito sobre a doença do rei, procurando medieval” – como foi chamado por alguns A expedição de Paulo Dias de Novais a
desvendar os poucos sintomas expressos – era assim um dos precursores dos novos Angola e a fundação da cidade de Luanda
na correspondência dos seus mais directos exércitos, que apresentavam uma renova- fizeram parte desde plano, que se supõe
colaboradores, mas também no que diziam dora capacidade da infantaria disciplinada ter como mentor uma figura quase des-
– com menos recato – os embaixadores es- e treinada em exercícios constantes, à ma- conhecida, mas que foi membro do con-
trangeiros. Já muito se escreveu sobre o neira das unidades romanas descritas por selho de estado e um dos fidalgos mais
assunto e, sobretudo, muito se especulou, escritores clássicos e recordadas em textos ricos do reino. Trata-se de Jorge da Silva,
com considerações que estão longe de dos humanistas. Este novo exército conso- o filho de um regedor da Casa da Supli-
qualquer sustentabilidade, não passando lidava, além do mais, a tutela do rei absolu- cação, no tempo de D. João III, conselhei-
de cedências à mesquinhez da pequena tista sobre o poder militar, remetendo para ro da regente Dª Catarina e do próprio
história misteriosa e à tentação pelo enredo um plano de menor importância a força de- D. Sebastião. Será assunto para uma
alcoviteiro. Mas não restam dúvidas que a corrente da estrutura senhorial tradicional. próxima Revista.
doença o perturbou e determinou muitos Foi a nobreza quem mais resistiu a uma ino- J. Semedo de Matos
aspectos do seu comportamento impulsi- vação que só viria a consolidar-se na Europa CFR FZ
vo. Talvez porque acreditasse – como lhe durante o século XVII.
21REVISTA DA ARMADA • SETEMBRO/OUTUBRO 2011