Page 157 - Revista da Armada
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A  MULETA
             A designação genérica _muletaR aparece no século XVI.
          Segundo o  _Livro dos  Regimentos dos Oficiais Mecânicos
          da Mui Nobre e Sempre Leal Cidade de Lisboa~ (1572), que
          regulamenta o  transporte de mercadorias para Abrantes,
          Tancos,  Punhete,  Santarém  e  outros  portos,  não deviam
          tra:z.er outra vela senão redonda para segurança da gente
          por não poderem virar por dentro como fazem oscaravelóes
          e barcas grandes, porque por as ditas muletas trazerem as
          velas doutra maneira dão por davante com a  vela sobre o
          mastro e se perdem, e a verga de tais muletas não sera mais
          ~mprida do que fora muleta de roda a roda ... (' ).  Numa pe-
          tição de 1596 os barqueiros de Santarém dizem que o rio es-
          tava  muito assoreado e  já  não havia caravelões e  barcas   Os bras()es da vila do Seixal e da cidade do BUfeuo,  nos quais a
          grandes, mas apenas batéis e  muletas, de menor portel' ).   muleta (igufa como fJx-libris daquelaa localidades.
          Em 1552 João Brandão s6 menciona no Tejo barcas e batéis
          (de. pesca e transporte) ('). mas em 1620 já Nicolau de Olivei-
          ra  mforma  que Lisboa tinha  muitos barcos pequenos, de
          pesca, a que chamam muletas, e  o regimento das dizimas   mas foi  uma das artes mais representativas do Mediterrâ-
          do pescado da Casa de Bragança (13-11-1633) refere as mu-  neo. praticada por franceses, italianos e espanh6is com em-
          letas de sardinha do rio (").  Não se trata da modema muleta   barcações (tartanas) e  redes de formatos e  dimensões va-
          do Seixal e do Barreiro (a da tartaranha), que não era peque-  riadas -  a muleta do Seixal e do Barreiro será uma dessas
                                                             tartanas, genulna ou adaptada. Milita a favor desta hipóte~
          na (tinha 15 a 20 tripulantes) e não pescava sardinha. A sar-
          dinha era capturada com chinchas e  chinchorros, redes de   se um documento de 1671, no qual a Câmara de Lisboa con-
          a~asto para a  praia: segundo um assento da vereação de   sidera ser de indeferir, como já fora no reinado de D.JoãoIV,
          LISboa (12-12-1672), as muletas dos crunchorros são barcas   um requerimento de dois franceses que se propunham usar
         mais pequenas que as chinchas e não podem acomodar as   redes novas em tartanas semelhantes às lanchas dos corsá-
         redes sobre o leito com as bolas de barro (wchumbadas. )   rios mouros; eram piores que as nossas tartaranhas por te-
         pelo muito volume que fazem ; a  malhagem estabelecida   Iem malhagem ainda mais reduzida e mwtomaiorocompri-
         pela câmara se deve entender só para as tartaranhas e não   menta do saco(" ). As redes não foram autorizadas mas as
         para  as chinchas e  chinchorros, porquanto antes se lhes   embarcações terão ficado, nesta altura ou poucos anos de-
         deve dar malha com que possam tomar sardinha, que é para   pois: em 1694 foi concedida licença a Estevam da Lu:z.,  mo-
         que estes barcos tlm a principal serventia. Um documento   rador em Lisboa, para exercitar um novo método de pesca
         de  1645 revela  que duas muletas  pescaram com  tartara-  oito léguas para o mar dentro com quatro novas embarca-
         nhas junto à Torre de Belém, mas não era ainda a modema   ções, não podendo cada uma tra:ler mais que dois france-
         muleta  porque outro de  1643 (") di:z.  que as redes  tartara-  ses(" ). O motivo por que receberam o nome de muleta de-
         nhas estão muito disseminadas no Tejo e ja se não usa de   ver-se-á á circunstAncia de esta designação genérica (a mu-
         outro modo de pescar, não só na barcas. senão ainda (ate)   leta do Mondego é muito diferente e não usa tartaranha) ser
         nas muletas. A embarcação da tartaranha continuava a ser   também de origem francesa -  "mulette., de .mulet~, mu-
         denominada ubarco ou barca" (em 1618),  ~tartaranha* (em   gem (muge em provençal). A  mugem e o sável derramaram
         1646 e 1658) ou ~~chinchorro" (em 1686)('0). No seu Vocabu-  no  Tejo  uma mancha crematistica que atraia numerosos
         lário (1712-1727) ainda Bluteau diz que a muleta serve para   pescadores forasteiros e  suscitou a  imposição de avenças
         pescar e  transportar mercadorias,  tendo nos bordos duas   e arrendamentosobrigat6rios; já as Cortes de 1433-34 pedi-
         pás que lhe servem de/eme, e que a tartaranhp ê um barco   ram a D. Duarte a renovação da ordem deD.JoãoI que veda-
         de pescaria que anda com vela latina e dois paus compridos   ra a  safra de sáveis  e  mugens aos que a não tomassem de
         que saem pela proa e  pela popa. Isto é, a  rede tartaranha   arrendamento. Assim como o sável deu o nome a  diversas
         era.arrastada po~ qualquer embarcação atipica, de formato   embarcações (saveiros), redes (saval e sávara) e até pesca-
         e  dImensões vaIladas, com os botal6s lançados à  proa e  à   dores (saveiros), também a mugem, que concitou o interes-
         popa para abrirem a  rede e  suportarem o  velame que lhe   se de mercadores estrangeiros (em 1460 o  florentino Lou-
         permitia a manobra de abater atravessada ao vento e à cor-  renço Be.rardi participava na pesca da «muginill), deu nome
         rente.                                              a en:'barcações (muletas) e à povoação de Muge.
                                                               E not6ria a influência mediterrânica na pesca de arrasto
         A  MULFTA  DA  '!'ARTARANHA                         portuguesa durante o  século XV. Em 1443 o infante D.Pe-
                                                             dro concedeu a exploraçAo do coral, em regime de exclusivi-
            A  moderna muleta já figura  no  _Caderno de Todos os   dade por cinco anos, aos mercadores Bartolomeo Di lacopo
         Barcos do Tejo ... R (1785) e é mencionada nas Memórias Pa-  (de Florença) e João Forbin (de Marselha), que podiam tra-
         roquiais de Setllbal e num documento de 1720, na qual o rei   zer ~specialistas marselheses e provençais com redes, en-
         manda que o guarda-mor da sallde visite gratuitamente em   xárclas e ~parelhagens para as embarcações. A primeira re-
         Paço de Arcos os barcos e muletas de pesca que regressa-  ferencia conhecida à rede bugiganga, de arrasto, reporta-se
         rem  do  mar(").  Parce evidente que foi  introdu:z.ida nesta   ao seu ernf'rego no Tejo em 1439, sob a denominação ... Bo-
         época. Como?                                       guyo.  (ou _Bugeiro_ em documentos posteriores)(" ), mas
            A  tartaranha teve expressão irrelevante em Portugal,   em 1538 já aparece com anomenclatura actual no Monde-
                                                            go, onde revolucionara a pesca fazendo lanços de mil saveis
                                                            e muito outro pescado ("). Bugiganga vem de bugi, buge, do
            (' ) A. J. Nabais,  . História do Concelho do Seixal_. 2 - Barcos.   latim «bulga_  (alforge, saco de couro), pelo francês  I<bouge~
         Seixal. pp. 91 esegs.                              (saco, saca, mala); ganga é alteração do francês «ganguyll,
            (')  M .  A.  Rocha  Belrante .• Santarém  Ouinhentista _.  Lisboa.
         1981,p. 154.                                           (" ) Idem, Vol. Vl1, p . 284. A rede tarrana francesa está minucio·
            (') JolJo BrandlJo,  «Tratado da Magestade.  Grandeza e  Abas-  samente deSCrita  em  M.  Duhamel du  Monceau.  NTraitá  General
         tança da Cidade de Lisboa ... N ,  BdiçlJade 1923, p . 98.   das PiJches et Histoire des Poissons ... ". Paris 1769.  Vol.  I.  pp.  155
            (' ) "Biblioteca da Academia das CitJnciasde Lisboa_. serie ver·   a 158eXLV.
         lllelhan .~ 275.                                       {" I E. Freire de Oliveil"a, ob. cit .. Vol. IX. pp. 362 a 373.
            (0) E. Freire de Oliveira, ob. cit., Vol. IV, p. 62 e Vol.  VJJ,  p. 417.   (" ) C. M. L. Baeta Neves,  . História Florestal, Aquicola e Cme-
            ('0) Idem,  Vol. JI,  p . 427,  Vol. V,  pp. 35 e  79,  Vol.  VJJJ,  pp. 574   gética ... " , Vol. l1, Lisboa, 1980,p. 22.
         a 576.                                                 (" ) Matluscritos de Mesquita de Figueiredo. na Biblioteca Mu-
            (" I Idem, Vol. XI. p. 435.                     niciJ)ll1 da Figueira da Foz, caderno 14: pp. 44 a 51

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