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REVISTA DA ARMADA | 551


         O ESTADO DE EMERGÊNCIA


         O TRATAMENTO CONSTITUCIONAL DA EXCEPÇÃO


         PARTE I – O REGIME, E A SUSPENSÃO DO EXERCÍCIO DE DIREITOS



         ENQUADRAMENTO                                         Assim, face à magnitude dos direitos em causa, e do determinante
                                                              impacto social que induzem, existe, notoriamente, uma responsa-
            os Estados democráƟ cos de Direito, as situações de excepção   bilidade políƟ ca de acrescida acuidade na defi nição dos estados de
         Nrequerem, por natureza e conceito, um tratamento consƟ tucio-  excepção, pelo facto de ser uma matéria que contende com direitos
         nal próprio, muito preciso, porque envolvem uma restrição directa   que se inserem no quadro dos designados direitos fundamentais,
         ao nível do exercício de determinados direitos que nos são ineren-  sendo o regime da suspensão do exercício de direitos objecto de tra-
         tes – e que o texto consƟ tucional defi ne e garante –, com um no-  tamento normaƟ vo muito específi co no arƟ culado consƟ tucional
         tório pendor, o mais das vezes, ao nível dos direitos de circulação,   logo em sede do arƟ go 19º, preceito incluso no Título I da CRP –
         das designadas liberdades económicas e de exercício laboral. Assim,   Princípios gerais (da Parte I – Direitos e deveres fundamentais), ou
         e aquando da declaração quer do estado de síƟ o quer do estado   seja, matéria com dignidade jurídica superlaƟ va na Lei Fundamental.
         de emergência, torna-se, pois, premente, assegurar um equilíbrio   Impõe-se, pois, uma avaliação sistémica, ainda que breve, dos regi-
         material entre a necessidade de o defi nir e o grau de restrição de   mes em causa, bem como do âmbito de intervenção das Forças Ar-
         direitos que é imposto à população durante um determinado pe-  madas e, no aplicável, dos órgãos da Autoridade MaríƟ ma Nacional
         ríodo, sendo por tal facto que a nossa Lei Fundamental reserva ao   (AMN) em estado de emergência. É disso que cuidaremos no pre-
         Presidente da República – como acto próprio – a sua declaração,   sente arƟ go, em duas Partes sequenciais, situando-nos no regime
         cumpridos que sejam os pressupostos estatuídos no arƟ go 19º, na   do estado de emergência.
         alínea d) do arƟ go 134º, no arƟ go 138º, na alínea l) do arƟ go 161º,
         na alínea e) do arƟ go 164º, e na alínea f) do arƟ go 197º, todos da   A SUSPENSÃO DO EXERCÍCIO DE DIREITOS
         ConsƟ tuição da República Portuguesa (CRP), o que envolve a inter-
         venção funcional de outros dois órgãos de soberania, a Assembleia   Logo em sede do nº 1, do arƟ go 19º, da CRP, se estatui expressa-
         da República e o Governo.                            mente o princípio de que não pode haver suspensão do exercício
           No quadro do estado de emergência que decorre em Portugal,   dos direitos, liberdades e garanƟ as, por qualquer um dos órgãos de
         foi com parƟ cular rigor e sustentação que foi publicado o Decreto   soberania, a não ser que seja declarado – nos devidos termos cons-
         do Presidente da República nº 14-A/2020, de 18 de Março – reno-  Ɵ tucionais – o estado de síƟ o ou o estado de emergência.
         vando-se a declaração quinze dias mais tarde através do Decreto nº   Isto é, apenas em situações consƟ tucionais de excepção, em que
         17-A/2020, de 2 de Abril – em cujo âmbito jurídico se estatui a sus-  ocorra uma situação de necessidade pública do Estado – o que pres-
         pensão parcial do exercício de um conjunto de direitos elencados   supõe a existência de uma crise ou de uma emergência pública,
         no diploma, em sete âmbitos bem defi nidos como sejam: o direito   com a ocorrência de um perigo efecƟ vo para a própria existência,
         de deslocação em território nacional, propriedade e iniciaƟ va eco-  segurança ou organização do Estado enquanto colecƟ vidade –, é
         nómica privada, direitos dos trabalhadores, circulação internacional,   que pode ser declarado um regime que suspenda direitos. É, pre-
         direitos de reunião e de manifestação, liberdade de culto e direitos   cisamente, a situação de calamidade pública que, estando prevista
         de resistência. Como é notório, trata-se de um conjunto de direitos   no nº 2, do arƟ go 19º, igualmente sustentou a declaração que o Pre-
         de extrema importância em termos de relevância consƟ tucional, e a   sidente da República defi niu para o período que decorre, estando
         necessidade da sua suspensão implica uma profundíssima refl exão   expressa como jusƟ fi cação logo no arƟ go 1º do seu Decreto.
         jurídico-políƟ ca e social.                           Os direitos fundamentais são posições jurídicas básicas reconheci-
           Contudo, e vivendo-se uma situação de absoluta calamidade in-  das pelo Direito português, cuja materialidade substanƟ va é a defe-
         ternacional, que afecta actualmente – do que se conhece – mais de   sa dos valores e interesses mais relevantes que assistem às pessoas
         190 países e territórios, que é o resultado da doença que, há cerca   singulares e colecƟ vas, independentemente da nacionalidade. A
         de 5 meses, foi detectada na cidade chinesa de Whuan, a Ɵ pologia   CRP prevê e regula duas grandes categorias de direitos fundamen-
         de medidas a tomar pelos vários Governos tem, necessariamente,   tais: os direitos, liberdades e garanƟ as, e  os direitos e deveres eco-
         um enquadramento de absoluta excepcionalidade. Tanto mais que,   nómicos, sociais e culturais. Os primeiros correspondem ao núcleo
         tendo sido admiƟ do pela Organização Mundial da Saúde (OMS) a   axiológico fundamental da vivência numa sociedade democráƟ ca,
         existência de um surto (aumento brusco de casos numa determina-  independentemente de leis que os protejam, sendo sempre invocá-
         da região), esta Organização declarou, a 30 de Janeiro deste ano, a   veis à luz de um regime consƟ tucional específi co, que difi culta a sua
         situação relaƟ va ao COVID-19 como sendo uma Emergência de Saú-  restrição ou suspensão. Entre tais direitos, que se encontram elen-
         de Pública de âmbito internacional, sendo que, apenas mês e meio   cados no Título II da Lei Fundamental (arƟ gos 24º a 97º), elencam-se
         depois (11 de Março) teve que a assumir como Pandemia Interna-  o direito à vida, à integridade pessoal, à idenƟ dade e, além desses,
         cional, o que Ɵ nha ocorrido pela úlƟ ma vez há 10 anos em relação à   outros direitos pessoais, como a liberdade e segurança, a proprieda-
         doença provocada pelo H1N1.                          de privada, a parƟ cipação políƟ ca e a liberdade de expressão.
           A indução que, de forma catastrófi ca, tem ocorrido em grande par-  Como traço defi nidor – de entre as caracterísƟ cas do regime dos
         te do mundo, implica uma reavaliação dos quadros normais do exer-  direitos, liberdades e garanƟ as consagrado pelo arƟ go 18º da CRP –
         cício dos direitos pelas populações – e mesmo de alguns dos seus   eles são de aplicabilidade directa, independentemente da eventual
         direitos fundamentais –, sendo esta a única forma de precaver a pro-  intervenção do legislador, e impõem a imediata vinculação dos po-
         pagação e os níveis de contágio da doença, de molde a salvaguardar   deres públicos e das enƟ dades privadas. É por esta sua morfologia ju-
         a vida e as determinantes razões de saúde pública.   rídica que está prevista uma exigência de autorização consƟ tucional


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