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A MARINHA DE D. JOÃO III (3)



                                 O corso francês
                                 O corso francês



               abertura da rota do Cabo da Boa  gueses, mas uma boa parte destas expedi-  zava a entrada do Mediterrâneo, os portos
               Esperança às especiarias orientais  ções acabaram por aportar à costa brasileira  do Algarve e as praças africanas, dos diver-
         A  afectou, de forma significativa, uma  onde era mais fácil carregar tranquilamen-  sos tipos de corso que assolavam esta zona.
         série de poderes comerciais instalados no  te os navios, especialmente com pau Brasil.  Referi esse facto na Marinha de D. Manuel
         Mediterrâneo, habituados a receber esses  De um modo geral, Jean Ango valeu-se dos  (56), falando de Vasco Fernandes César, o
         produtos do Médio Oriente e a distribui-los  serviços de pilotos portugueses que tinham  seu primeiro capitão. No Verão de 1523
         pela Europa, a partir dos                                                           andavam pelo Algarve
         portos ribeirinhos deste                                                            duas frotas de corsários
         mar interior. Aqueles de                                                            franceses, uma delas co-
         que imediata mente nos                                                              mandada pelo célebre
         lembramos são os súbdi-                                                             Jean Fleury (ou Florin),
         tos da Senhoria de Vene-                                                            um dos homens que Jean
         za, de que conhecemos                                                               Ango financiava. Vasco
         as conspirações junto dos                                                           Fernandes César tinha
         turcos e de outros pode-                                                            sido encarregado de levar
         res orientais, tentando                                                             a Arzila D. João Coutinho
         sufocar a linha aberta pe-                                                          (Conde de Redondo),
         los portugueses, a partir                                                           mas quando se afastou
         da viagem de Vasco da                                                               do resto da sua esquadra,
         Gama em 1497 -99. Mas                                                               foi atacado por Fleury
         estes não eram os únicos                                                            e aprisionado ao fim de
         que beneficiavam do ve-                                                              um longo combate que
         lho comércio das especia-                                                           terminou com a explosão
         rias, anterior à epopeia                                                            de um barril de pólvora a
         portuguesa. Os france-                                                              bordo do seu navio. En-
         ses (entre outros) parti-                                                           carcerado numa torre, em
         lhavam desses benefícios   “Vista aérea da propriedade mandada edificar por Jean Ango em Varengeville, nos arredores de Dieppe.   Dieppe, fugiu com o au-
         com as mercadorias que   A contrução redonda no interior era um pombal onde eram recebidas e emitidas as mensagens do arma-  xílio de um cabo que fez
         chegavam aos portos do   dor de corsários”                                          desfiando uma esteira, e,
         sul (Marselha é um exemplo), e eram dis-  alguma experiência da Carreira da Índia e  com a ajuda de uns frades franciscanos, che-
         tribuídas por linhas terrestres e fluviais até  que, de algum modo, se desentenderam  gou à Flandres, de onde regressou a Portu-
         à Inglaterra e ao Báltico. É certo que as cir-  com a coroa de Portugal, ou que sonharam  gal. Ataques deste tipo repetiram-se múlti-
         cunstâncias políti cas vividas ao longo do  com riquezas que lhes pareciam mais fáceis  plas vezes e a forma como prejudicavam o
         século XV não correram de forma a ajudar  numa aventura menos controlada pelo po-  comércio português era notória, levando a
         esta actividade – talvez fosse essa a razão  der central.             que o rei, por vezes preferisse fazer acordos
         porque assistiram impávidos à partilha de   Mas para além destas viagens mais or-  com os próprios armadores corsários, em
         Tordesilhas – mas a nostalgia desses tempos  ganizadas e com objectivos precisos de al-  vez de levar a cabo negociações demoradas
         permaneceu e a partir da segunda década  cançar fontes de comércio rico, os france-  com resultados sempre duvidosos. Assim
         do século XVI, os franceses surgem no Atlân-  ses levaram a cabo uma persistente acção  aconteceu, por exemplo, em 1530, quando
         tico para contestar o poder naval “espanhol”  de corso quase indiscriminado sobre os  a Esquadra do Estreito aprisionou uns na-
         e português. Fazem-no tentando chegar às  navios ibéricos, a que não escapavam os  vios de Jean Ango que haviam intersectado
         fontes ultramarinas ibéricas e através do  portugueses. Conforme nos diz O Grande  um carregamento de ouro espanhol, vindo
         corso sobre as linhas de navegação.  Livro da Pirataria e do Corso, de Ramalhosa  da América Central. D. João III não quis
           Os mais activos marinheiros franceses  Guerreiro, entre 1508 e 1538 registam-se  libertar os franceses porque achava que
         provêm das regiões da Bretanha (Saint  423 aprisionamentos de navios portugue-  eram muitas as presas que já tinham feito
         Malo, La Rochelle,...) e da Normandia  ses por parte do corso francês, e é provável  aos portugueses, mas uma carta de marca
         (Dieppe, Ruão, Honfleur,...), sabendo-se a  que este número não contemple todos os  obtida por Ango, para exercer represálias,
         intensa acção de um armador e empresá-  casos ocorridos. Normalmente, actuavam  fez com que se negociasse um acordo di-
         rio de corsários, residente em Dieppe, cujo  num espaço marítimo entre as ilhas Caná-  recto que, naturalmente, custou caro ao te-
         financiamento das acções contra os navios  rias, a Madeira, os Açores e a costa conti-  souro nacional.
         portugueses remontam à primeira ou se-  nental portuguesa, mas podiam alargar a   O problema arrastou-se durante décadas
         gunda década do século XVI. Financiou  sua zona de acção até ao arquipélago de  sem soluções definitivas. Chegou mesmo a
         várias tentativas de alcançar o Oriente, al-  Cabo Verde ou mesmo ao Golfo da Guiné.  assinar-se um tratado em Lião, a 14 de Ju-
         gumas através do Cabo da Boa Esperança e  E, naturalmente, as Berlengas ou as passa-  lho de 1536, com acordos de livre acesso aos
         outras procurando a lendária e inexistente  gens do Cabo Espichel e S. Vicente consti-  portos e regras para impedir o corso, mas os
         passagem pelo Ocidente, na região da Ter-  tuiam locais privilegiados, onde era possí-  resultados foram apenas de abrandamen-
         ra Nova ou Labrador. Alguns dos seus na-  vel aguardar a presa mantendo a vantagem  to passageiro do que era um mal endémico
         vios chegaram a Socotorá, a Madagáscar e  táctica para o ataque.      inerente à disputa do poder naval.
         mesmo à Índia, sem grandes resultados. Os   No final do reinado de D. Manuel, foi                      Z
         que passaram para o Índico acabaram por  criada uma Esquadra do Estreito cuja fun-       J. Semedo de Matos
         naufragar ou ser aprisionados pelos portu-  ção era a de proteger a navegação que cru-            CFR FZ
                                                                                       REVISTA DA ARMADA U JULHO 2005  17
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