Page 235 - Revista da Armada
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A MARINHA DE D. JOÃO III (3)
O corso francês
O corso francês
abertura da rota do Cabo da Boa gueses, mas uma boa parte destas expedi- zava a entrada do Mediterrâneo, os portos
Esperança às especiarias orientais ções acabaram por aportar à costa brasileira do Algarve e as praças africanas, dos diver-
A afectou, de forma significativa, uma onde era mais fácil carregar tranquilamen- sos tipos de corso que assolavam esta zona.
série de poderes comerciais instalados no te os navios, especialmente com pau Brasil. Referi esse facto na Marinha de D. Manuel
Mediterrâneo, habituados a receber esses De um modo geral, Jean Ango valeu-se dos (56), falando de Vasco Fernandes César, o
produtos do Médio Oriente e a distribui-los serviços de pilotos portugueses que tinham seu primeiro capitão. No Verão de 1523
pela Europa, a partir dos andavam pelo Algarve
portos ribeirinhos deste duas frotas de corsários
mar interior. Aqueles de franceses, uma delas co-
que imediata mente nos mandada pelo célebre
lembramos são os súbdi- Jean Fleury (ou Florin),
tos da Senhoria de Vene- um dos homens que Jean
za, de que conhecemos Ango financiava. Vasco
as conspirações junto dos Fernandes César tinha
turcos e de outros pode- sido encarregado de levar
res orientais, tentando a Arzila D. João Coutinho
sufocar a linha aberta pe- (Conde de Redondo),
los portugueses, a partir mas quando se afastou
da viagem de Vasco da do resto da sua esquadra,
Gama em 1497 -99. Mas foi atacado por Fleury
estes não eram os únicos e aprisionado ao fim de
que beneficiavam do ve- um longo combate que
lho comércio das especia- terminou com a explosão
rias, anterior à epopeia de um barril de pólvora a
portuguesa. Os france- bordo do seu navio. En-
ses (entre outros) parti- carcerado numa torre, em
lhavam desses benefícios “Vista aérea da propriedade mandada edificar por Jean Ango em Varengeville, nos arredores de Dieppe. Dieppe, fugiu com o au-
com as mercadorias que A contrução redonda no interior era um pombal onde eram recebidas e emitidas as mensagens do arma- xílio de um cabo que fez
chegavam aos portos do dor de corsários” desfiando uma esteira, e,
sul (Marselha é um exemplo), e eram dis- alguma experiência da Carreira da Índia e com a ajuda de uns frades franciscanos, che-
tribuídas por linhas terrestres e fluviais até que, de algum modo, se desentenderam gou à Flandres, de onde regressou a Portu-
à Inglaterra e ao Báltico. É certo que as cir- com a coroa de Portugal, ou que sonharam gal. Ataques deste tipo repetiram-se múlti-
cunstâncias políti cas vividas ao longo do com riquezas que lhes pareciam mais fáceis plas vezes e a forma como prejudicavam o
século XV não correram de forma a ajudar numa aventura menos controlada pelo po- comércio português era notória, levando a
esta actividade – talvez fosse essa a razão der central. que o rei, por vezes preferisse fazer acordos
porque assistiram impávidos à partilha de Mas para além destas viagens mais or- com os próprios armadores corsários, em
Tordesilhas – mas a nostalgia desses tempos ganizadas e com objectivos precisos de al- vez de levar a cabo negociações demoradas
permaneceu e a partir da segunda década cançar fontes de comércio rico, os france- com resultados sempre duvidosos. Assim
do século XVI, os franceses surgem no Atlân- ses levaram a cabo uma persistente acção aconteceu, por exemplo, em 1530, quando
tico para contestar o poder naval “espanhol” de corso quase indiscriminado sobre os a Esquadra do Estreito aprisionou uns na-
e português. Fazem-no tentando chegar às navios ibéricos, a que não escapavam os vios de Jean Ango que haviam intersectado
fontes ultramarinas ibéricas e através do portugueses. Conforme nos diz O Grande um carregamento de ouro espanhol, vindo
corso sobre as linhas de navegação. Livro da Pirataria e do Corso, de Ramalhosa da América Central. D. João III não quis
Os mais activos marinheiros franceses Guerreiro, entre 1508 e 1538 registam-se libertar os franceses porque achava que
provêm das regiões da Bretanha (Saint 423 aprisionamentos de navios portugue- eram muitas as presas que já tinham feito
Malo, La Rochelle,...) e da Normandia ses por parte do corso francês, e é provável aos portugueses, mas uma carta de marca
(Dieppe, Ruão, Honfleur,...), sabendo-se a que este número não contemple todos os obtida por Ango, para exercer represálias,
intensa acção de um armador e empresá- casos ocorridos. Normalmente, actuavam fez com que se negociasse um acordo di-
rio de corsários, residente em Dieppe, cujo num espaço marítimo entre as ilhas Caná- recto que, naturalmente, custou caro ao te-
financiamento das acções contra os navios rias, a Madeira, os Açores e a costa conti- souro nacional.
portugueses remontam à primeira ou se- nental portuguesa, mas podiam alargar a O problema arrastou-se durante décadas
gunda década do século XVI. Financiou sua zona de acção até ao arquipélago de sem soluções definitivas. Chegou mesmo a
várias tentativas de alcançar o Oriente, al- Cabo Verde ou mesmo ao Golfo da Guiné. assinar-se um tratado em Lião, a 14 de Ju-
gumas através do Cabo da Boa Esperança e E, naturalmente, as Berlengas ou as passa- lho de 1536, com acordos de livre acesso aos
outras procurando a lendária e inexistente gens do Cabo Espichel e S. Vicente consti- portos e regras para impedir o corso, mas os
passagem pelo Ocidente, na região da Ter- tuiam locais privilegiados, onde era possí- resultados foram apenas de abrandamen-
ra Nova ou Labrador. Alguns dos seus na- vel aguardar a presa mantendo a vantagem to passageiro do que era um mal endémico
vios chegaram a Socotorá, a Madagáscar e táctica para o ataque. inerente à disputa do poder naval.
mesmo à Índia, sem grandes resultados. Os No final do reinado de D. Manuel, foi Z
que passaram para o Índico acabaram por criada uma Esquadra do Estreito cuja fun- J. Semedo de Matos
naufragar ou ser aprisionados pelos portu- ção era a de proteger a navegação que cru- CFR FZ
REVISTA DA ARMADA U JULHO 2005 17