Page 343 - Revista da Armada
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tros de altura, o risco de encalhar era a sua  do tragédia e uma perda irreparável para   Cabo M Pereira,
          maior preocupação, não só porque podia  tantas famílias. Não há palavras de confor-  um patrão exemplar
          comprometer a missão, mas também por-  to que apague tanto sofrimento, mas como
          que se tornavam um alvo muito fácil na  militares que fomos e somos, depois de tan-  Ainda hoje recordo o Cabo M Pereira, que me apa-
          presença do inimigo.              tas afrontas e incompreensões porque pas-  receu na Base de Patrulhas de Ganturé na Guiné, com
                                                                                a sua LDM 113. Tinha pouco mais de quatro meses
            Por dois anos, uma embarcação, tal como  sámos, dando o justo valor, cabe-nos agora   de permanência naquela ex-Província, e vinha fazer
          esta,  era o seu lar. Ali viviam, comiam e dor-  a honra e a humildade de testemunhar o   o primeiro cruzeiro no rio Cacheu. Como Imediato
          miam, sujeitos ao imenso calor e humidade,  nosso preito de reconhecimento aos nossos   do Destacamento de Fuzileiros Especiais Nº 1 (DFE1),
          aos mosquitos, à melhor ou pior sorte quan-  heróis, símbolo da Pátria.   fiz-lhe um «briefing» da zona, tendo efectuado com
          do em contacto com o inimigo a que estavam   Fiéis ao seu sacrifício e à sua memória ou-  ele algumas patrulhas no rio para o inteirar das zo-
                                                                                nas mais perigosas. Dias depois lá fez o seu cruzeiro
          permanentemente expostos quando em cru-  samos citar o poeta Fernando Pessoa:  Cacheu acima, mas no regresso, em 7 de Agosto de
          zeiro, que chegaram a atingir os 60 dias fora   “Firme em minha tristeza vivi.  1973 já perto de Ganturé. é atacado numa clareira por
          da base de Bissau.                 Consegui contra o Destino o meu dever.  fogo IN. Em poucos minutos chegámos à LDM 113,
            Além das importantes missões de fiscali-  Inutilmente? Não, porque o cumpri”.  onde fomos encontrar o patrão e outra praça grave-
                                                                                mente feridos. Socorridos que foram os sinistrados,
          zação, com relevância para o rendimento da   Neste respeito, já vai sendo tempo de to-  de imediato foram conduzidos para o local onde
          eficácia do binómio                                  dos os portugue-  os esperavam a evacuação aérea. O CAB M Pereira
          -navio-fuzileiro- e                                 ses sem excepção,   haveria de se despedir desta vida nos meus braços,
          de apoio às opera-                                  sem medos e sem   enquanto que seis dias depois o MAR CM Silva veio
          ções  no desembar-                                  preconceitos ou   igualmente a falecer em Bissau.
                                                                                  É de elementar justiça transcrever o louvor dado
          que de forças, de-                                  ressentimentos pe-  em 21 de Setembro de 1973, pelo então Comandan-
          sempenhadas pelas                                   rante as causas da   te da Esquadrilha de Lanchas da Guiné, 1º Tenen-
          unidades da Esqua-                                  guerra do Ultra-  te António Maria Catarino da Silva: «Após cerca de
          drilha de Lanchas                                   mar, entenderem   cinco meses em serviço na Província da Guiné faleceu em
                                                                                combate o patrão da LDM 113, Cabo M nº 2404 - Jorge
          da Guiné, importa                                   melhor a actuação   António Pereira.
          também salientar                                    dos militares em    Navegava a LDM 113 num dos rios do norte da
          os aspectos consequentes das necessidades  África, ou onde quer que seja e sempre no   Província, quando ao atravessar uma clareira foi em-
          das nossas forças terrestres, em vastas áre-  cumprimento de objectivos políticos, por-  boscada por forte grupo IN armado de RPG`s e armas
          as estarem exclusivamente dependentes do  que os militares num acto voluntário de re-  automáticas.
                                                                                  O patrão da lancha Cabo M Nº 1404 Jorge António
          tráfego fluvial, sendo as lanchas a única for-  núncia pessoal, assumem a dádiva da pró-  Pereira que ia ao leme deu ordem de fogo tendo a guar-
          ma do suporte logístico de toda a espécie, tal  pria vida para a luta pela liberdade e pela   nição reagido de forma notável. A certa altura um RPG
          como a segurança e protecção da drenagem  independência da sua Pátria, atitude que re-  disparado pelo Inimigo atravessou a chapa blindada da
          dos produtos económicos da Guiné, o que  vela um sentimento de fidelidade ao dever   cabine, e os estilhaços feriram o patrão mortalmente e o
                                                                                telegrafista com gravidade.
          obrigava por regra, a constituir comboios  de que poucos se poderão orgulhar.  Cônscio da importância que o governo da lancha re-
          escoltados por lanchas.             Sempre assim foi e sempre assim há-de ser   presentava no desenrolar do combate, a última preocu-
            Tal como disse, poderá hoje ser difícil de  por todos os tempos, enquanto o sentir das   pação que o patrão já quase sem vida mostrou, foi entre-
          avaliar o esforço e o sacrifício destes homens,  Nações continuar a considerar a função mili-  gar o governo ao Marinheiro Telegrafista que a seu lado
          mas quem da Marinha, Exército ou Força  tar como valor fundamental e indiscutível da   se encontrava ferido.
                                                                                  Por em todas as missões que lhe foram incumbidas e
          Aérea em serviço na Guiné partilhou esta  vida colectiva, como o prova o testemunho   particularmente na que acaba de ser relatada, ter mostra-
          vivencia, pode testemunhar a nobreza e a  dos séculos. Se alguma vez for renegada a   do coragem, decisão, grande espírito de sacrifício e elevada
          generosidade destes dignos marinheiros no  existência de umas Forças Armadas coesas e   noção do dever militar, é de toda a justiça, ao abrigo do
          cumprimento do dever e no espírito de mis-  unidas pelo ideal patriótico, não mais será pos-  Artº 120 do RDM, louvar a Título Póstumo o Cabo M
                                                                                nº 2404   Jorge António Pereira pelas excepcionais quali-
          são que muito honraram a Armada a que  sível defender a liberdade e a dignidade das   dades demonstradas».
          pertenciam. Assim, apesar dos mortos e dos  pessoas, bem como das próprias Nações.               A.M.S.
          feridos, dos costados das embarcações com   Contrariando a crise moral e de valores
          dezenas de furos e                                  que perigosamen-   No dia 16 de Dezembro de 1967 foi ataca-
          outros danos gra-                                   te se propaga, onde   da e afundada no rio Cacheu, incidente que
          ves, da LDM 302 ter                                 tudo o que exige   ocasionou a morte do seu patrão, MAR M
          sido afundada e re-                                 sacrifício é pos-  Domingos Lopes Medeiros, e do GRT A Ma-
          cuperada duas ve-                                   to em causa, esta   nuel Santos Carvalho. Foram ambos conde-
          zes, foi possível as-                               nossa cerimónia   corados a título póstumo na cerimónia do 10
          segurar, até ao fim,                                 aqui hoje levada a   de Junho de 1968, com a medalha de Cruz
          a utilização dessas                                 efeito, além de se   de Guerra de 3ª classe. Trazida à superfície,
          vias de comunica-                                   revestir sempre da   a LDM 302 foi reparada em Bissau, e posta
          ção, constituindo                                   maior justiça pelo   de novo a navegar. Logo no primeiro cruzei-
          ponto de Honra e Glória para a nossa Ma-  alto significado patriótico que representa,   ro, seis meses depois e no mesmo local onde
          rinha na Guiné.                   também servirá para que os jovens deste   tinha sido anteriormente atacada - Porto
            De 1961 a 1974, além dos 74 fuzileiros mor-  País, sintam a necessidade de reflectirem   Coco, no rio Cacheu - foi de novo atingida
          tos em combate na guerra em África (50 na  com isenção e mais detalhe sobre a verda-  com violência, o que teve como consequên-
          Guiné, 12 em Angola, um dos quais a bordo  de da história da Guerra do Ultramar, o que   cia a morte do GRT A António Manuel, e fe-
          duma LDP no Leste, e 12 em Moçambique),  lhes permitirá assegurar uma maior admira-  rimentos noutra praça.
          ao serviço da Esquadrilha da Guiné morre-  ção pelo sofrimento e dor dos nossos com-  De novo reparada, a lancha já não voltou
          ram, igualmente em combate, 8 praças, dos  batentes e, deste modo, melhor poderem   mais ao Cacheu, passando a actuar no rio
          quais dois eram patrões. Não se verificaram  merecer o futuro, sentindo o estímulo de   Grande de Buba, onde mais uma vez so-
          outras baixas em combate entre o pessoal das  saber servir Portugal na divisa de “a Pátria   freu em Fevereiro de 1969 novo ataque, que
          lanchas nos restantes teatros de operações.  Honrai, que a Pátria vos contempla.”   causaram três feridos. Seria abatida em 30
            Esta é a realidade indesmentível que fez   Muito obrigado.         de Novembro de 1972.
          com que muitos dos nossos jovens, na força         J. Lopes Carvalheira                              Z
          da vida, ficassem pelo caminho, constituin-                    VALM                       Abel Melo e Sousa
                                                                                                          CFR RES
                                                                                    REVISTA DA ARMADA U NOVEMBRO 2005  17
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