Page 9 - Revista da Armada
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qual a casa constructora que melhor poderá construção do motor que inventou para o visão Naval da África Oriental, de onde
por em pratica e confidencialmente o plano seu torpedeiro submersivel […]”, passando seguiu para Macau, território onde serviu
do primeiro tenente Valente da Cruz […]”. ao ministério das Colónias. nos dois anos seguintes. Foi depois servir
De facto, na época, Sir Philip Watts (1846- Convicto que estava do valor técnico e na Guiné onde, em 1894 combateu revol-
1926) era director das Construções Navais comercial das soluções que propunha, o tas de poderes locais contra o governador
do Almirantado, onde tinha chegado oriun- tenente Cruz patenteou-as em mais do que português. Transferido para Moçambique,
do do departamento de material militar dos um local e ocasião. Relativamente a esta lá participou nas operações de combate
estaleiros Armstrong, nas suas instalações iniciativa, está documentado o pedido de às forças dos régulos subordinados ao se-
de Elswick, Newcastle (no nordeste da Grã- patente, em França, contemporâneo da en- nhor de Gaza e, nos dias finais de 1895,
-Bretanha). Esta casa detinha experiência na trega do seu Projecto na Direcção Geral de no aprisionamento do próprio Gungunha-
construção de navios, armamento, locomo- Marinha, em 1905, bem como duas outras na. Para além destas suas acções em terra,
tivas e, um pouco mais tarde, também de depositadas no United States Patent Office embarcou e comandou navios.
automóveis e aviões. As diligências diplo- datadas de 1921 e 1922, referentes a um dis- A forma como se houve das missões que
máticas a que aludimos terão sido bem su- positivo de ignição para minas explosivas, e a Marinha lhe confiou, valeram-lhe um
cedidas, pois foi nas oficinas de Elswick que a um magnetómetro para medição de cam- impressionante elenco de condecorações:
se desenrolou a construção do protótipo do pos magnéticos fracos. Estas duas últimas em 1894 era já oficial da Ordem da da
“motor Valente da Cruz”. Não são muitos patentes, em particular, mostram-nos que o Torre e Espada, detentor da medalha por
os detalhes até agora comprovados sobre o génio inventivo de Valente da Cruz não se serviços relevantes no Ultramar, da meda-
desenrolar desta actividade, ainda que al- confinou ao torpedeiro submersível e às suas lha de prata da Rainha D. Amélia, sendo
guns dos seus traços sejam detectáveis em machinas motoras. ainda cavaleiro da Ordem de S. Tiago.
correspondência trocada entre o estaleiro e O rasto documental de Júlio Valente da Mais tarde foi agraciado com a medalha
o tenente Cruz, apesar de esta estar limitada Cruz desvanece-se a partir da segunda me- de ouro de Valor Militar, a medalha de
a um período relativamente curto. tade da década de 1910. Dispomos da certi- Aviz e a dos Serviços Distintos no Ultra-
Uma carta crucial é aquela mar, entre outras condecora-
em que Valente da Cruz se diri- ções e louvores.
ge ao estaleiro “Sir W. G. Arms- A história de Júlio Lopes Va-
trong & Co.”, escrevendo em lente da Cruz, herói africano e
francês, para explicar a missão visionário, permanece ainda
de que tinha sido encarregado plena de silêncios. Será neces-
pelo governo português, bem sário um novo esforço de reve-
como da verba de que dispu- lação de fontes que permitam
nha para o efeito (£ 1.333, cor- preenchê-los, designadamente
respondentes precisamente aos quanto à sua qualidade de pre-
6.000$000 reis que lhe tinham cursor dos primeiros submari-
sido atribuídos por Lisboa). A nos que, há um século atrás,
última troca de correspondên- entraram ao serviço da Mari-
cia a que acedemos até ao mo- nha. A sua contribuição nesta
mento, dava conta de um atra- empresa, ainda que indirec-
so por parte do estaleiro, que ta e singular, revela-nos uma
assumia as responsabilidades personagem determinada e de
por erros cometidos na sua ofi- grande riqueza criativa, cuja
cina de moldes. Paralelamente, Vista dos estaleiros Armstrong em Elswick, Newcastle, na década de 1910. acção tem sido de certo modo
em cumprimento das instruções que lhe ti- dão do seu casamento, em 15 de Setembro ofuscada pela de Fontes Pereira de Melo
nham sido dadas, o tenente Cruz escreveu de 1917, com Rosetha Atkinson, de 27 anos, mas que parece merecer mais do que este
à Direcção Geral de Marinha, relatando de quem viria a ter larga prole: três varões e singelo texto que aqui deixamos ao leitor.
as incidências da construção do protótipo, três raparigas. Também sabemos que foi pro-
bem como do uso que ia fazendo da ver- movido a Capitão-de-fragata em 1918, pas- Nota final
ba que lhe estava confiada. A última carta sando à reserva no último dia de 1928. Mor- Muito que deixamos escrito sobre Júlio Lo-
para Lisboa de que dispomos, está datada reu em 5 de Maio de 1943, na Figueira da pes Valente da Cruz e a sua acção, tanto na sua
de Dezembro de 1906. Foz, onde residia “[…] há muitos anos […]” qualidade de combatente em África como na de
Relativamente à sua situação formal peran- e tinha sido vereador e gerente da então já inventor, fica largamente a dever-se a fontes que
extinta Companhia Eléctrica local, de acordo foram levantadas e nos foram confiadas pelo co-
te a Marinha, sabemos que, em Novembro mandante Carlos da Encarnação Gomes, o atento,
de 1907, foi mandado “[…] passar à situa- com o obituário que lhe dedica o Jornal da profícuo e informativo “vigia da História”, regular
ção de commissão especial por ter de per- Figueira da Foz. presença nesta Revista. A ele se deve, portanto,
manecer ainda no estrangeiro, dirigindo a Este pequeno texto bem podia ser dado este primeiro esforço de procurar dar a merecida
construção do motor da sua invenção desti- dimensão a uma figura da Marinha que, nas obras
nado a barcos submersíveis”. por encerrado com a notícia da sua mor- até agora publicadas, não parece ter sido objecto
te. No entanto, ainda que nos tenhamos do relevo que inegavelmente merece. As incor-
Apesar de, entretanto, o primeiro submari- dedicado ao seu labor visionário relati- recções são, no entanto, inteiramente da nossa
no integrado na Marinha portuguesa, o “Es- vamente aos contributos inovadores que responsabilidade.
padarte”, ter já sido encomendado (17 de Ju- pretendia oferecer ao seu País para desen-
nho de 1910) e se encontrar próxima a data volver a então nascente arma submarina,
do seu lançamento à água (5 de Outubro de a história da vida de Júlio Valente da Cruz
1912), a construção do motor do tenente ficaria injustamente incompleta sem uma F. David e Silva
CALM
Cruz prosseguia ainda em Inglaterra. Aque- referência à sua acção nas campanhas
le esforço terá, no entanto, chegado ao fim africanas, anterior a 1897, ano da sua ida Nota:
com a publicação de uma portaria que, em para França. 1 Embora este elemento não fosse muito importante, pois
tratava-se de um navio de defesa costeira, na sua versão mais
Abril de 1912, exonera Júlio Valente da Cruz Aspirante de 1ª classe em Outubro de evoluída podia alcançar 2 500 milhas, a 7 nós.
“[…] de encarregado de assistir em Inglater- 1890, com 20 anos de idade, Valente da N.R.
ra ou n´outro centro industrial estrangeiro á Cruz recebeu guia de marcha para a Di- Os autores não adotam o novo acordo ortográfico.
REVISTA DA ARMADA • ABRIL 2013 9